Movimento estudantil no País fez história e ganha projeto de preservação

29/05/2004 - 16h30

Rio, 29/5/2004 (Agência Brasil - ABr) - "A UNE somos nós, nossa força, nossa voz", o velho grito de guerra da União Nacional dos Estudantes ecoou pelo Salão Nobre do Museu da República, nesta capital, durante o lançamento do Projeto Memória do Movimento Estudantil na última quinta-feira (28). Líderes do passado e de hoje se encontraram para relembrar fatos marcantes e debater o papel da entidade nos dias atuais. Emocionado, o diretor-geral do Museu da República, Ricardo Vieira, lembrou que o momento era marcante, porque a UNE, pela primeira vez, entrava no Palácio pela porta da frente. "Nessa sala, onde era um local de audiência dos presidentes da República eu vou poder dizer: a UNE somos nós, nossa força, nossa voz. Esse é ato mais forte, de um simbolismo imenso para democracia brasileira. A UNE adentrou o Palácio do Catete e subiu pela porta da frente. Essa afirmação democrática que nos faz pensar na memória do movimento estudantil, como fato fundamental histórico para a história do nosso País e para a memória do povo brasileiro", disse

O chefe da Casa Civil, José Dirceu, o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, o presidente do PSDB, José Serra, que estiveram no comando da UNE, participaram de uma mesa-redonda e falaram sobre as diferenças entre o movimento estudantil de hoje e o dos tempos da ditadura.

José Serra, que foi o último presidente antes do golpe de 64, quando a UNE entrou na ilegalidade, disse que havia muito menos estudantes que hoje, mas havia mais disponibilidade. "Hoje a tarefa é mais complexa. Hoje precisa encontrar formas para se politizar". Ele lembrou a demolição da sede da UNE, na praia do Flamengo. "Em 1980, o governo Figueiredo destruiu a sede, no Flamengo, 132. Era um clube alemão que os estudantes tomaram de assalto durante a guerra. Senti uma dor na alma ao ver o prédio incendiado, não pode ter dor mais forte. De certa forma, eu sabia que era algo muito traumático para o Brasil. Naquela noite, antevi que nós íamos ter uma noite muito longa e, de fato, foram duas décadas." Para Serra, se a UNE conseguir a reintegração da sede, ela deve ser construída com a mesma arquitetura de antes. "Construir tal como era, pelo menos a fachada."

O ministro José Dirceu, que foi preso no congresso de Ibiúna (SP), em 1968, disse que descobriu sua vocação para a política quando começou a integrar o movimento estudantil. "Quando entrei na universidade achei que ia nascer, mas aí morri porque encontrei um verdadeiro cemitério por causa da censura. O Centro Acadêmico fechado, muito conservadorismo, autoritarismo. Eu encontrei no movimento estudantil a razão da minha vida, apesar de ser um bom aluno, a minha vida foi a política e é. O movimento estudantil que me fez politicamente". Dirceu não acredita que a eleição de Lula tenha arrefecido os choques entre estudantes e governo. "Não, os estudantes fazem oposição, protestam o governo em muitas questões. O grau de partidarização é ruim, mas de politização é bom." Mas admitiu que a realidade social brasileira separa os jovens. "A vida é a vida. Nós temos uma juventude classe média e outra que vive na pobreza e na miséria, nós temos que lutar pra mudar. Hoje, há dois sonhos pelos quais vale a pena lutar: mudar a realidade do ensino médio, levando 5,6 milhões de jovens às salas de aula, e ajudar a combater a violência nos grandes centros, que atinge principalmente os jovens. São duas bandeiras que o movimento estudantil pode assumir, até para pressionar o governo e o Congresso a tomar as medidas necessárias."

Também participaram na mesa-redonda o deputado federal Lindberg Farias, que presidiu a UNE no início dos anos 90 e que comandou o movimento dos cara pintada no impeachment do presidente Fernando Collor; o atual presidente da entidade, Gustavo Petta; José Talarico Gomes, um dos fundadores da UNE; e a professora Clara Arnt, a primeira mulher a comandar o movimento estudantil.

O projeto Memória do Movimento Estudantil vai reunir documentos sobre as lutas dos estudantes brasileiros. O primeiro passo será uma campanha nacional de TV, veiculada a partir de agosto, para incentivar a doação de documentos sobre as manifestações estudantis. Quem quiser doar, já pode se inscrever via internet, no site www.memoriaestudantil.org.br.

O consultor do projeto é o jornalista Caio Túlio Costa, líder estudantil e autor do livro "Cale-se", que trata da história da prisão, tortura e morte do líder estudantil Alexandre Leme, da reação que houve na USP contra essa prisão, da mobilização dos estudantes para mobilizar a sociedade contra essa prisão. "Este é o momento que o movimento estudantil renasce, não só como movimento de massa, porque houve uma missa na catedral da Sé para homenagear o estudante morto, como renasce enquanto movimento de massa pacífico". Como consultor, Caio vai organizar workshop’s e seminários.

O projeto Memória do Movimento Estudantil está orçado em R$ 1,527 milhão, verba doada pela Petrobras. A empresa é parceira da Fundação Roberto Marinho, da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Museu da República, da TV Globo e do Ministério da Cultura.

DEPOIMENTOS

MARCO MACIEL - Em 1963, era presidente da União dos Estudantes de Pernambuco.
Dentro dessa luta pelo movimento estudantil está também a defesa da causa da educação, acho que é a grande questão brasileira, ainda não totalmente resolvida e fundamental pra que nós possamos ter uma presença maior no Brasil do séc XXI. Um projeto consistente de desenvolvimento para o país depende da educação, da ciência e da tecnologia.

JOSÉ DIRCEU - União Estadual dos Estudantes (UEE)

Quando entrei na universidade achei que ia nascer, mas aí morri porque encontrei um verdadeiro cemitério por causa da censura, o centro acadêmico fechado, muito conservadorismo, autoritarismo. Eu encontrei no movimento estudantil a razão da minha vida, apesar de ser um bom aluno,a minha vida foi a política e é, e o movimento estudantil que me fez politicamente. Eu comecei pela cultura, a primeira atividade que fiz, que era proibida foi cine-clube, com um grande amigo que foi assassinado pela ditadura José César Sabá .Depois, toda a minha vida até eu ser preso e ser trocado pelo embaixador foi a luta estudantil, a luta pela democracia. Os estudantes, o movimento estudantil e a UNE sempre tiveram importância na vida cultural e política do país e continuam tendo. Eu acho que o movimento é forte, ele é diferente, se expressa de outras formas, tem outros temas, levanta outras questões, porque o Brasil é outro, a juventude é outra. Naquela época, só o movimento estudantil tinha uma organização que sobreviveu à repressão, então ele ganhou uma expressão maior do que ele tinha. Hoje temos sindicato, temos ONG’S, por isso também é que não há essa importância do movimento estudantil, ainda que a juventude seja importante.

A eleição do Lula fez cair esses choques? Não, os estudantes fazem oposição, protestam o governo em muitas questões. O grau de partidarização é ruim, mas de politização é bom . Eu acho que juventude brasileira é muito politizada, o movimento sindical brasileiro foi criado por jovens, o movimento dos Sem Terra foi criado por jovens , se você olhar todos os grandes movimentos políticos do Brasil, todos os líderes eram jovens. Nós somos um país bendito por ter uma juventude politizada. A vida é a vida, nós temos uma juventude classe média e outra que vive na pobreza e na miséria, nós temos que lutar pra mudar. A única coisa que eu espero não ter perdido é o sentimento que eu tinha , e ainda tenho, de jovem rebelde, por isso que as vezes pago um preço por isso.

GUSTAVO PETTA - Atual presidente da UNE

Ao resgatar nossa memória, conhecer melhor nosso passado, fazemos com que a atual geração do movimento possa continuar nossa luta.Essa parceria é importante para conhecer um pouco daqueles que lutaram pela reforma universitária nos anos 60, como o José Serra, o Aldo Arantes que não está aqui, fundador dos centros populares de cultura. Conhecer a luta histórica daqueles que resisitiram à ditadura. Conhecer aqueles que reconstruíram a UNE e lutaram pela conquista da democracia.

ALDO REBELO - Presidente da UNE em 1980

Qual é o papel hoje do movimento estudantil na construção da história? Ele está representado aqui nessa mesa pelas personalidades e lideranças importantes hoje na política do Brasil. Não só no governo, na oposição, em todas as esferas da atividade social, nós temos um grande número de lideranças estudantis que saíram do movimento secundarista, universitário. E acho que essa presença é coerente com a história do Brasil. Os estudantes sempre estiveram presentes desde a época da colônia, principalmente aqui no Rio de Janeiro. O Euclides da Cunha foi, de certa forma, uma liderança estudantil no colégio militar de onde foi expulso. Até condenado a morte por desafiar o ministro da guerra do imperador. Eu acho que essa trajetória justifica nossa presença nas lideranças estudantis no País.

JOSÉ GOMES TALARICO - Um dos fundadores da UNE, em 1938

Esse palácio faz parte de muitos acontecimentos, que levaram à consolidação da UNE e das lutas dos estudantes. Aqui que inauguramos a campanha do "Petróleo é Nosso", aqui viemos pedir o reconhecimento da UNE. Aqui também, em 1936, conseguimos o reconhecimentos dos diretórios acadêmicos.

CLARA ARNT - A primeira mulher a comandar o movimento estudantil.

O papel da UNE continua sendo muito importante, mesmo sendo modificada sua caracterítica. Naquela época, estávamos numa transição democrática, época de mobilização intensa. A plenitude democrática nos coloca outras formas de mobilização. Hoje é um papel da participação cívica, de formação de cidadão. Nesse sentido, sua trajetória, sempre lutando pelos interesses nacionais, tem sido importante. Hoje a Une entra no congresso, entra no senado, é outra forma de luta.

LINDBERG FARIA - Presidente da UNE em 1992

A UNE tem que continuar carregando o sonho da juventude, o sonho de mudança. Isso pesou muito na minha geração. Se hoje temos o Brasil que temos, devemos a todas as lutas que foram importantes, as Diretas, a caminhada do Fora Collor. Se nós hoje temos o espírito mais democrático estalado no País, essas batalhas foram importantes. Eu tenho certeza que, daquela geração cara pintada, muitos jovens saíram daquele processo com nível de consciêcia muito superior. A UNE tem que continuar sendo isso, esse porta voz da generosidade, de bandeiras humanistas.

JOSÉ SERRA - Eleito na UNE em 1963

A relação com o governo de Jango era complexa. A UNE desempenhou um movimento fundamental para a sua posse, o chamado Movimento da Legalidade e apoiava o governo em tudo que fosse democratização, mas ao mesmo tempo tinha um comportamento de atrito. Nós temíamos pela interrupção da marcha democrática. Nós tínhamos consciência que o golpe não seria superficial. Há um dado que é fundamental, diferencial entre agora e aquela época . O fato é que havia muitos menos estudantes universitários que hoje. A UNE era mais elite que hoje, mas tinha mais disponibilidade pra mobilização que hoje. Hoje a tarefa é mais complexa, precisa encontrar fórmulas para politizar. Outra questão é que, de fato, antes de 64, o movimento cultural no Brasil foi renovado dentro da UNE. O Movimento Estudantil renovou o teatro, o cinema, com os centros populares de Cultura. Essas foram contribuições que não sei porque não podem ser feitas hoje. Naquela época se pensava um Brasil do futuro, evidentemente tudo parecia mais fácil, havia a revolução cubana. Sempre se achava que a mudança estava atrás da esquina, havia um voluntarismo que era saudável. E movimento estudantil sem voluntarismo não existe. É por isso que, na minha geração, quando a gente vê alguém que virou de esquerda, que não era do movimento estudantil, em geral não faz política direito, porque na vida a gente tem que percorrer esse processo.