Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Brasília – Transferência de renda não é esmola, não mata ninguém de vergonha e nem vicia cidadão nenhum. Pelo menos na opinião de Selma Ferreira, 42. Se ainda há quem cite os versos cantados por Luiz Gonzaga para criticar programas como o Bolsa Família, que esta semana completou um ano, pelo menos uma das brasileiras de mais antiga experiência pessoal com esse tipo de ação pública contraria diversas opiniões correntes pelo senso comum país afora.
Selma e seus seis filhos constituem uma das primeiras famílias brasileiras beneficiadas por um programa de transferência de renda nos moldes atualmente aplicados pelo Bolsa Família. Esse modelo começou a ser aplicado por governos estaduais e municipais em 1995, primeiramente pelo governo tucano em Campinas e no governo petista no Distrito Federal, onde se passou a exigir pelo recebimento do benefício a comprovação de freqüência escolar de todos os filhos da família entre 6 e 14 anos.
Em 1995, a diarista habitava com a mãe, os irmãos e os filhos um barraco de madeirite no Paranoá, uma invasão de área pública próxima de alguns dos terrenos mais nobres de Brasília que, sob as bênçãos do presidente Fernando Collor, se convertera em cidade-satélite poucos anos antes. Informada pela escola dos meninos sobre o cadastramento que o governo do Distrito Federal faria para os possíveis beneficiados por um novo programa de auxílio às famílias pobres, Selma se dirigiu no dia marcado até o posto de inscrição.
O jeito tímido e reservado que Selma conserva até hoje foi o elemento que, segundo ela, contribuiu decisivamente para que sua família se tornasse a n. 1 no cadastro. "Só vou em ônibus e fila de banco porque sou obrigada. Cheguei de madrugada, às cinco e pouco da manhã, para ver se já não encontrava ninguém. Tinha medo de que aquilo desse em confusão".
O receio, explica ela, devia-se em parte ao fato de o descrédito da novidade ser geral. "Era gente ‘da oposição’, como se diz. Diziam que eu ia alugar os filhos, que aquilo não ia funcionar. O povo é igual São Tomé... Depois que viram que funcionava, todo mundo passou a querer, e quem não ganhou dizia que era marmelada".
Com o salário mínimo que passou a receber como incentivo para manter os três filhos mais velhos na escola, Selma, então já separada do segundo marido, praticamente dobrou a renda mensal, que obtinha, como até hoje, trabalhando de diarista. A primeira utilidade do dinheiro, lembra, foi comprar uma televisão, que na época a família não tinha. "A prestação, claro". Depois, o barraco foi virando casa. "Até hoje não terminamos a obra, como você pode ver", aponta para as paredes ainda sem reboco nem pintura.
Mas, os principais ganhos que ela contabiliza não estão à mostra por ali. "Conheço todo mundo que recebeu a bolsa por aqui. O dinheiro foi muito bem aproveitado. Principalmente, a alimentação de todo mundo melhorou. A gente pode não ter nada em casa, mas comida não pode faltar", destaca Selma, mesmo dizendo não saber nada sobre o Fome Zero, programa de segurança alimentar do governo federal.
A goiana órfã de pai, que estudou até a sétima série, teve dois maridos e criou sozinha meia dúzia de filhos "sem parar para ficar olhando as dificuldades". Depois de receber por vários anos o auxílio, ela, como outras famílias da região, foi excluída do programa do governo distrital sem maiores explicações. Passou a receber a bolsa da ONG Missão Criança, que até hoje auxilia 1.000 famílias no DF em situação de pobreza a manterem seus filhos na escola com um auxílio mensal de R$ 200.
Selma fala com naturalidade do destino do filho mais velho, de 22 anos, e parece se surpreender de o repórter propor a relação: "Até o Bolsa Escola, o Steve guardava carros pela cidade pra me ajudar. Depois, ele começou a fazer a capoeira dele". E hoje, no que ele trabalha? "Ele dá aula de capoeira, é mestre. Tem uns amigos que até estão indo para a Alemanha fazer show". Quer dizer que foi só depois do Bolsa Escola que ele passou a ter tempo para se dedicar àquilo que se tornou sua profissão? "É... Foi".