Julio Cruz Neto e Leandro de Souza
Enviados especiais
Bogotá (Colômbia) - Quando Clara Rojas engravidou num cativeiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em algum mês de 2004, passou-lhe pela cabeça a idéia de não ter o filho. Mas aí pensou bem, lembrou-se que já tinha 40 anos e conclui que, senão desse à luz ali, mesmo com todos os contratempos, talvez nãotivesse outra chance. Além disso, avaliou que poderiam ter compaixão e libertá-los.Enganou-se na estratégia, mas não na decisão de deixar vir ao mundo Emmanuel, que hoje está se recuperando de uma seqüela do parto e levando uma vida normal. Neste segundo semestre, ele vai começar a freqüentar a escola. Como não conheceu o guerrilheiro que o gerou, ele não tinha a quem presentear no Dia dos Pais. Então, o menino disse para Clara que ela representa as duas figuras - a mãe e o pai.É isso que Clara Rojas, hoje com 43 anos e livre das Farc há seis meses, conta nesta terceira parte da entrevista exclusiva concedida em Bogotá à Agência Brasil e à TV Brasil.Agência Brasil: O que você achou do resgate de Ingrid Betancourt?Clara Rojas: Adorei, porque o resultado foi espetacular, osseqüestrados estão bem. Estão todos muito orgulhosos do nosso Exército.ABr: O resgate pode ser interpretado como um enfraquecimento das Farc?Clara: É um golpe bárbaro, pois representa a possibilidadede penetrar de maneira aparentemente fácil [nocativeiro], então você imagina como as Farc estão vulneráveis. Tudo isso seexplica pela comunicação. Como falta contato direto, os comandantes, graças àinteligência do Exército, [os militares],puderam penetrar, dar-se conta do problema e preparar a armadilha.ABr: Você acha que esse tipo de operação inviabiliza oacordo humanitário?Clara: Claro, porque já saímos quase todos [os reféns políticos]. Então, as Farc nãoestão em posição de exigir o que querem, que é a desmilitarização de Florida e Pradera [cidades do estado Valle del Cauca, no oeste do país, costa pacífica].O que todos estão dizendo a eles é que liberem unilateralmente as próximaspessoas, num gesto de bondade, para poderem depois sentar à mesa denegociações.ABr: Como é o modusoperandi dos chefes das Farc?Clara: O chefe do acampamento fica muito distante doscativos. Basicamente, há alguns guardas para trazer os suprimentos, a comida ea roupa, basicamente. O trato é muito distante, você os vê uma ou duas vezespor ano, não mais. O comandante que nós tínhamos, eu via três vezes por ano, nomáximo. Como não tinham resposta sobre o que ia ser de nós, evitavam ao máximoo contato para não haver discussões.ABr: Como era a alimentação?Clara: Havia comida, mas era sempre a mesma. E quandoestávamos caminhando, era mais precária, porque como você tem que carregar, asrações são menores. E as pessoas têm mais fome quando caminham. Quando se estáparado, ao menos é constante, mas sempre o mesmo, simplezinho: arroz, às vezesbatatas, mandioca, banana...ABr: Carne?Clara: Não, absolutamente. Uma vez por ano traziam uma vacae repartiam entre todos, então dava um pedacinho para cada (riso tímido). O queàs vezes faziam era caçar animais de montanha e às vezes havia peixe. Isso eraótimo porque pelo menos é uma carne fresca e o peixe é nutritivo.ABr: Você ouvia transmissão de rádio do Brasil?Clara: Na etapa final, ganhei um rádio de ondas curtas,então ficava sintonizando para ver o que havia. Enjoava de ouvir sempre asmesmas estações e achei uma do Brasil, adorei. Era uma forma de começar aentender o idioma. É muito parecido. E se você presta atenção, pode entender asnotícias. Eu gostava do programa econômico sobre como vai a política no Brasil,algumas coisas sobre o presidente.ABr: E agora você fala português?Clara: Quem dera, mas pelo menos eu escuto e fico encantada,porque é um idioma muito sonoro. Aliás, me surpreende que sendo vizinhos,vivemos como se estivéssemos longe um do outro, como se vocês, ou nós,estivéssemos na Europa. Não sei se é o idioma que nos separa, ou a selva, mas éuma fronteira que deveríamos cruzar mais, estar mais próximos.ABr: Você então estava perto da fronteira com o Brasil?Clara: É possível, porque se o rádio pegava...ABr: Você ainda não sabe onde ficou presa?Clara: Não. Imagino que seja muito perto do local ondeliberaram Ingrid (estado de Guaviare, no sudeste do país).ABr: Após o seqüestro, quantos contatos você teve com Ingrid?Clara: Eles nos seqüestraram juntas e nos separaram apósdois anos e meio, de forma que só fui encontrá-la semana passada. Me alegroumuito saber que estava viva, porque havia rumores... Saber que estava bem,porque havia preocupações com o estado de saúde... Senti um alívio enorme.Porque além de termos sido seqüestradas juntas, tínhamos um longo caminhoanterior. É como se tirasse um peso das costas, e vou tirar mais ainda quandolibertarem as pessoas que faltam, que são vinte e cinco, vinte e dois oficiais da polícia e trêscivis. Não temos notícias de alguns deles há mais de quatro anos, épreocupante. Devem estar em maus lençóis.ABr: Você e Ingrid vão voltar a fazer política juntas?Clara: Boa pergunta. A Ingrid acaba de sair, vai quererficar um pouco com a família, aterrissar um pouco. Eu já estou em liberdade hácinco meses e estou mais inclinada a ficar com minha família, ainda mais porquemeu filho precisa da minha presença. Estamos recuperando o tempo perdido,ficamos mais de três anos separados. Eu o recuperei em situação crítica, agoraele está recuperando o bracinho. Vou me organizar na parte familiar.ABr: Mas você pensa em voltar para a política?Clara: A princípio, me interessa uma atividade mais social,gosto muito dos temas do meio ambiente, da água, da conservação da floresta...A infância também me atrai. Como houve tanta repercussão por causa do meu filho, achoque é um campo a se investir.ABr: Você se importa em falar sobre o Emmanuel?Clara: Não, adoro. É a coisa mais importante da minha vida (abreum sorriso mais solto).ABr: Quando saiu do cativeiro, ele estava num abrigo. O queaconteceu desde então?Clara: A primeira informação que eu tive dele, após quatroanos de seqüestro, foi pelo presidente Uribe, que sinalizou a hipótese de que aquelemenino que estava sob cuidados de um instituto em Bogotá era meu filho. Metranqüilizei ao saber que ele estava livre e podia ver minha família. Quando melibertaram, minha preocupação foi vir da Venezuela para vê-lo. O reencontro foifantástico. Ele teve também um processo em que explicaram que a mãezinha deleestava vindo do exterior para buscá-lo. Ele esteve em vários lugares,aparentemente, e parece que trataram bem dele. Já no Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar, ele passou por um momentocrítico de saúde e depois tiveram que operá-lo, porque teve o braço fraturado no parto.E depois houve todo o processo de readaptação familiar. Explicaram que eu sousua mãe e ele imediatamente me acolheu como tal. Isso foi fantástico. Ele éesperto, pergunta tudo. Eu disse: “Emmanuel, o que você quer? Quero te levarpara viajar”. E ele: “Claro mamita, vamos subir num avião. Quero subirnum avião como o que trouxe você”. E eu disse: “Claro. Que bonecos você conhece?”E ele: “Mickey Mouse”. Então fomos aos Estados Unidos, temos família lá. Foilindo, foi no primeiro mês. Depois de aterrissar aqui, a realidade. Eu queriaque ele sentisse a casa, seu quarto, suas coisas. Porque no começo vivemos numhotel por dois meses. Em casa, começa a vida mais familiar.ABr: Como ele quebrou o braço?Clara: No momento em que nasceu. Foi um parto crítico (cesariana).Crítico pela notícia que vocês têm, de que não puderam me dar a assistêncianecessária. Os enfermeiros que cuidavam de mim, que eram das Farc, não souberamcomo fazê-lo. Foi tudo tão manual, tão rápido... Os instrumentos eramartesanais, então quebraram o braço para poder retirá-lo. A preocupação deles éque pensavam que o menino ia morrer, foram muitas horas de trabalho de parto.Quando acordei, estavam fechando a ferida e soube que o menino estava bem, mascom esse probleminha no braço. Nos primeiros oito meses em que estivemosjuntos, não houve a atenção médica necessária para curá-lo. Isso que estãofazendo agora, teria sido mais fácil num primeiro momento. Não seria precisooperá-lo. Os nervos morreram, é como se não houvesse passado energia por eles.Agora estão restabelecendo os nervos para que possa voltar a movê-los. Setivesse tido atenção da Cruz Vermelha Internacional, isso não aconteceria.ABr: Onde ocorreu o parto, numa tenda?Clara: Sim, numa condição muito rudimentar. Eu sempre tive boasaúde, acho que isso ajudou. Também acho que as pessoas que me atenderam sesolidarizaram, a situação os comoveu, porque eu decidi salvar a vida do menino,foi uma decisão minha. Eles fizeram o que puderam e foi isso que me salvou. Numdeterminado momento, eles disseram: “O que vamos fazer?”. E eu disse: “Temosque fazer todo o possível para salvar a vida do meu filho”.ABr: Você pensou na possibilidade de não ter a criança?Clara: Claro, sempre há essa possibilidade, mas eu não quisafrontar essa situação. Eu nessa época tinha 40 anos, então me parecia que senão tivesse o filho, que Deus me estava dando naquela situação, talvez nãotivesse outra chance. E também pensava que poderiam nos liberar [pelo fato de ter o filho], o que nãoaconteceu.ABr: Foi seu primeiro filho?Clara: Primeiro e, até agora, o único.ABr: Passou pela sua cabeça que Emmanuel poderia ficar empoder das Farc?Clara: Sim, e isso me angustiava muito. Dei muita ênfase aofato de que era meu filho e eles tinham que respeitar isso, fiz muita manha.Então um dia, para me acalmar, eles disseram: “Clara, fique tranqüila. O filhoé teu e vamos respeitar isso. Nos primeiros oito meses, ele ficou comigo, atéque adoeceu. Então resolveram tirá-lo de mim. Mas todo o tempo, eu implorei queo respeitassem, que não haveria por que ele sofrer as conseqüências da guerra,do conflito armado.ABr: Ele pergunta sobre o pai?Clara: Até agora, não (suspira). Algo que o inquieta é quetemos o Dia das Mães e o Dia dos Pais. Não sei se vocês sabem, mas tive a honrade ser nomeada mãe do ano por essa situação, então passamos por isso juntos.Foi muito lindo, também tive um reconhecimento especial nos Estados Unidos.Então veio o Dia dos Pais (comemorado no segundo domingo de junho na Colômbia).E eu disse: “Emmanuel, eu estou no Herbin [Hoyos,diretor de um programa de rádio que comunica os reféns com seus parentes] eestamos trabalhando o tema do presente do Dia dos Pais, o que eu faço?”. Eledisse: “Eu não tenho papai”. E eu respondi: “Sim, você tem, ou pelo menos teve”.Então achei a resposta uma graça, porque nunca tinha falado nada sobre isso. Éum menino tão pequeno que ainda está começando a entender a realidade. Não temconsciência total do que passou, então não tem uma inquietude em particular. Quandochegou o Dia dos Pais, ele disse que sou como pai e mãe dele, e me deu umpresentinho