Por Zofeen Ebrahim
Repórter da IPS/Envolverde
Mumbai,Índia - Não importa que Vimla Valmiky tenha ajudado nos partos de dezenas de bebês das altas castas hindus. Toda vez que ela ajuda o nascimento de uma criança ela diz ter "a mesma sensação inquietante que eles(os de outras castas) limpam depois de mim para purificar não só o bebê e a mãe, mas a casa inteira também, espargindo água benta por toda parte,". As vibrações sentidas por ela, uma parteira tradicional que estudou até o quinto ano primário, são excessivamente reais, num pais nascido como um Estado "democrático" e independente, com os mais de 250 milhões de dalits (os chamados párias ou intocáveis) que atualmente residem na Índia, a mais marginalizada entre todas as castas catalogadas.
Os Dalits representam um quarto de toda a população indiana. São os marginais do sistema de castas. Apesar de ter sido formalmente abolida em 1950, a intocabilidade ainda pesa sobre essa população, principalmente na zona rural da Índia. Ela se baseia na interpretação do hinduismo de que os dalits já nascem impuros e por isso são socialmente segregados. Vive-se na Índia um apartheid disfarçado, diz documento da Organização das Nações Unidas. Onde moram, não podem ultrapassar a linha que os separa dos moradores de outras castas ou usar o mesmo poço de água. Não podem frequentar o mesmo templo religioso ou beber do mesmo copo. A criança Dalit senta-se no fundo da sala de aula. Saneamento básico ou qualquer outro fruto do progresso ainda chega por último nessas comunidades.
Vimla Valmiky está em Mumbai com 20 companheiras, de idades e ocupações diversas, entre os cerca de 25mil dalits, de 20 estados, que se juntaram para serem ouvidos no Fórum Social Mundial, onde a questão de casta é um dos cinco temas principais que serão tratados nos painéis e nos protestos.
Segundo Xavier Joe Freddie, da Campanha Nacional para os Direitos Humanos dos Dalits, ele mesmo um não-Dalit: "Para alguns, a jornada começou no dia 6 de dezembro de 2003, com o lançamento do histórico movimento Dalit Swadhikar, uma manifestação nacional em prol dos seus direitos. A passeata partiu de quatro regiões diferentes da Índia: Jammu, Kanyakumari, Kolkata, e Delhi, e chegou ontem (16) em Mumbai.
O governo indiano, sempre sensível às criticas internacionais, agiu em setembro, 2001, para impedir a inclusão da questão das castas na agenda da Conferência da ONU sobre Racismo, em Durban, África do Sul. O argumento apresentado foi de que o governo já estava enfrentando o problema, que não se caracteriza como racismo.
Sahu Devi, frágil, com seus cinqüenta e tantos anos e cabelos grisalhos, aventurou-se em sair pela primeira vez da sua aldeia em Barmer, Rajasthan. "Levou quatro dias para chegar aqui," ela explica, agachada no chão empoeirado, tranqüila enfrentando o forte calor. Ela não sabe exatamente porque está aqui, mas, provocada pelas companheiras, continua: "Para observar, escutar e aprender, e depois voltar para contar aos demais como foi minha experiência," ela diz.
Por outro lado, Khatu Devi, uma jovem que está usando um "sari" (sarão) amarelo brilhante, um conjunto de braceletes vermelhos e um "bindi" (uma marca ou jóia na testa) especialmente para a ocasião, fala alto e claramente: "Viemos aqui para contar para os demais o quanto somos discriminadas. Queremos nossos direitos e achamos que este fórum é um lugar onde podemos contar ao mundo nossas mágoas." Ela trabalha numa mina e, durante os próximos dez dias ou mais que ela tirou do trabalho, não vai receber seu salário diário de R$ 50, nem cozinhar ou cuidar dos seus filhos ou buscar água. "Mas, o preço não é exorbitante, levando em conta o que recebemos em troca," afirma com otimismo.
Ghumpat Lal Mehra, que vem escutando as mulheres com atenção, acha que está na hora de dar sua opinião. Ele diz que estas mulheres enfrentam uma discriminação dobrada. Elas não são apenas mulheres pobres, mas, para aumentar seus problemas, são Dalits. "Portanto, por um lado, elas são intocáveis, mas, por outro, os thakurs podem tocá-las para seu prazer."
Segundo o Human Rights Watch, sediado em Nova Iorque, todos os anos os dalits são vítimas de mais de 100 mil atrocidades, incluindo homicídios e estupros. Da perspectiva dos hindus tradicionalistas, nem sequer deveria permitir-se que nos ônibus eles ocupem o mesmo banco que os indianos das altas castas.
"Se amanhã um thakur me oferecesse água do mesmo jarro, eu estaria tão atordoado que não saberia o que fazer," diz Ghumpet Lal Meher, um Dalit, que continua: "e Deus me proíba de tomar um gole, pois daria em confusão." Há poucos meses um grupo de dalits foi incendiado vivo após terem bebido água de um poço fora de seus domínios.
Para esses indianos, o progresso só pode começar depois que uma mudança foi tomada em relação ao estado de "intocabilidade". Enquanto isso, eles reivindicam trabalho, melhores perspectivas, a eliminação de um regime de escravidão e uma partilha justa da safra que cultivam na terra.
Tradução de David A.Silberstein