Por Maurício Hashizume
Repórter da Carta Maior
Mumbai, Índia – Uma multidão de dalit – denominação local dada aos "intocáveis", excluídos do sistema de casta - espalha-se pelo Nesco Grouds, local onde se realizam as atividades do 4o Fórum Social Mundial desde ontem, em Mumbai, na Índia. Eles representam um quarto da população de um bilhão de habitantes de uma das nações mais populosas de mundo e vieram do todos os cantos do país para reivindicar sua inclusão social. Sem proteção do Estado, eles formam a maior massa de desempregados da Índia e sofrem o preconceito de seus compatriotas que os consideram inferiores. São freqüentemente humilhados e reivindicam o direito de igualdade. "É a primeira vez que o tema dos dalit será tratado com destaque em uma instância de nível global como o FSM", afirma o coordenador da Conferência Nacional de Organizações Dalit (National Conference of Dalit Organisations), Ashok Bharti.
Em entrevista à Agência Carta Maior, o representante de cerca de 200 movimentos organizados de dalit espalhados por toda a Índia conta como é ser um "intocável", como podem ser identificados e qual será a tônica da participação no Fórum Social. Para ele, as políticas neoliberais adotadas na Índia, comandando os processos de privatização, só aprofundaram a exclusão. Na próxima segunda-feira (19), será realizada a principal atividade em prol dos dalit.
Agência Carta Maior - O que é ser um dalit na Índia?
Ashok Bharti- Para começar, gostaria de lembrar que temos problemas de racismo na Índia. Quem tem a pele mais escura sofre um certo tipo de preconceito. Sobre o sistema de castas, existem basicamente cinco divisões: três castas são consideradas superiores e uma, inferior. A quinta parte é formada por uma grande parcela da população que está do lado de fora dessa divisão social. Esse grupo é chamado de dalit, de "intocáveis".
Esse nome vem do fato de que um simples toque de qualquer representante de qualquer casta em um dalit requer um banho formal ou uma cerimônia religiosa para que seja consumada a "despoluição" do não-dalit. A nossa situação, hoje, mesmo depois de alguns avanços, é bem pior que a discriminação dos negros que lutaram sob o comando de Martin Luther King.
CM - Para um estrangeiro, não é simples identificar um dalit. Existe alguma forma de distinguir um "intocável" de um indiano das outras castas?
Bharti - Uma das identificações visuais de um dalit, que em Mumbai se concentram em conglomerados humanos parecidos com favelas chamados de "villages", são os colares e as pulseiras negras feitas de pequenas miçangas. E se um dalit ou uma dalit estiver vestindo uma roupa considerada de qualidade "superior", ou uma jóia mais valiosa que o ornamento negro nos
pescoços, pode ter seus pertences confiscados por qualquer um.
CM - Qual será o enfoque das discussões dos movimentos de dalit neste Fórum Social Mundial?
Bharti - Os dalits estão completamente integrados ao processo do Fórum Social Mundial 2004. A nossa organização (National Conference of Dalit Organisations) faz uma reunião a cada dois anos e define uma agenda. No encontro do ano passado, definimos a nossa participação no Fórum. Serão dois os grandes temas que nós buscaremos trazer. O primeiro deles é que os dalits são as maiores vítimas das políticas neoliberais que vêm sendo praticadas na Índia. Para se ter uma idéia, 95% trabalham no setor informal, o que significa menores salários. Todos os membros têm que trabalhar para que uma família de dalit sobreviva. Com a onda da privatização, proteções fundamentais à dignidade humana como a educação e o acesso à água passaram a ter um caráter privado.
Um exemplo claro disso é que o governo parou de construir escolas depois do acordo do governo indiano com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1992. Antes, havia um crescimento, ainda que bastante vagaroso, do número de escolas. Mas o poder público simplesmente acabou com um sonho nosso de que um dia haveria educação para todos.
Outra preocupação é reforçar o caráter "social" do Fórum Social Mundial. Estive em Porto Alegre, no Brasil, e tenho conhecimento que a maioria da população brasileira é negra ou parda. No entanto, a participação de brasileiros pertencentes a esses grupos era bastante pequena comparada a dos brancos. Nossa intenção aqui no Fórum da Índia é, com a participação de 30 mil intocáveis que virão de todas as regiões do país, dar prioridade absoluta ao caráter social do encontro para nos diferenciarmos claramente do Fórum Econômico de Davos (na Suíça).
CM - Quais dados concretos podem evidenciar melhor essa constatação de que a política com base no neoliberalismo atinge preponderantemente os "intocáveis"?
Bharti - Fizemos um estudo e notamos que os empregos para dalit dentro do setor público foram reduzidos em 10% nos cinco primeiros anos de política neoliberal na Índia. Percebemos também que o número de empregados públicos não-dalit de todo o país caiu 3% de 1992 a 1997. No mesmo período, esse mesmo índice para os "intocáveis" foi de 5,8%.
E segundo números oficiais, os gastos governamentais com bem-estar social para a população não-dalit vêm aumentando muito mais do que o mesmo gasto voltado para os dalit. Somos os primeiros a ter a dignidade perdida. O ônus da adoção de políticas neoliberais recai preponderantemente sobre nós.
CM- O senhor citou aspectos relacionados à educação em uma de suas respostas. Como o senhor avalia essa relação entre o ensino e os dalit?
Bharti- Existem basicamente três problemas centrais a serem superados na questão da educação. Primeiro, qualquer referência à cultura e à história dos dalit está fora de todos os currículos escolares, desde os cursos básicos até a educação superior. Não há também cursos de pós-graduação sobre nós, os dalit. Ou seja, quem formula as políticas públicas da educação na Índia ignora cabalmente nossa existência.
Segundo, não existe uma atmosfera propícia para a educação das crianças dalit. Elas são obrigadas a estudar a subjugação. Por exemplo: a vida e o papel cívico de praticar genocídios contra a população dalit.
Para completar, os cursos de formação de professores não prevêem o tratamento especial de crianças "intocáveis". Sabemos de histórias como a de uma garota que foi punida com agressões no rosto e perdeu a visão por "conduta inadequada" para uma dalit em uma escola comum da Índia. O que nós defendemos é que se o problema for ignorado, não haverá modos de resolvê-lo.
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