Vannildo Mendes e Antonio Milena
Enviados Especiais
Havana (Cuba) - Às vésperas da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo do presidente Fidel Castro prepara-se para aposentar o "paredón", como é conhecido em Cuba o local de execução de sentenciados à morte. Pressionado pela comunidade internacional e a igreja, que hoje já tem voz e assento nas instituições do estado comunista, o país acaba de criar uma comissão interdisciplinar, com representantes do governo, do parlamento e da sociedade civil, para reavaliar – e provavelmente abolir – a pena de morte.
A informação foi dada à Agência Brasil pelo reverendo Raul Soares, membro da Assembléia Nacional (equivalente à Câmara dos Deputados), pastor da Igreja Batista e aliado do regime. Amigo de Frei Betto e de outros clérigos brasileiros ligados à Teologia da Libertação, o reverendo Raul foi o único parlamentar a votar pela abolição da pena de morte na última revisão constitucional, em 1994. Ele lembra que, na época, o ministro da Defesa, Raul Castro, irmão de Fidel, defendeu com ênfase a necessidade de pôr fim às execuções, mas foi voto vencido.
Agora, a situação se inverteu por causa dos últimos expurgos, ocorridos em abril passado, quando três dissidentes foram fuzilados e 75 outros, condenados a penas que vão de dois anos a prisão perpétua. Os três mortos eram acusados de tentativa de seqüestro em barco para fuga da ilha. A mãe de um deles suicidou-se no mesmo dia das execuções, num gesto de desespero.
Havia três anos que a pena capital não era aplicada no país. Organizações de direitos humanos no mundo inteiro fizeram ruidosas manifestações. Os protestos incluíram também o papa João Paulo II, que há alguns anos visitou Cuba e discutiu com Fidel um programa de distensão do regime.
Aliados históricos de Fidel, como o escritor português José Saramago, romperam com a revolução cubana. Mas, o que mais incomodou ao governo cubano foi o conjunto de retaliações aprovado pela União Européia, em julho, contra o país. Foram cortados programas de ajuda econômica e social, e o fluxo de turistas começou a minguar. As autoridades alegam que o problema é cíclico e o turismo não chegou a ser afetado.
"A pena de morte foi um erro. Do ponto de vista cristão e pastoral, não posso concordar com execuções. Mas não se pode condenar apenas Cuba. Os Estados Unidos são os principais responsáveis por essa situação", disse o reverendo Raul Soares, que também dirige no país o Centro Martin Luther King, ONG ligada à defesa dos direitos civis.
Implantada no início da revolução, em 1959, para expurgar os contra-revolucionários ligados ao ditador deposto Fulgêncio Batista, além dos criminosos de guerra, a pena capital tirou a vida de dezenas de milhares de pessoas. Inicialmente, os processos de expurgo estiveram sob a coordenação do revolucionário Ernesto Guevara, "El Che", morto na Bolívia em 1967. Tão logo a revolução se consolidou, as execuções foram abrandadas até atingir um número inexpressivo na década de 90.
Muito a conversar
Por todos esses motivos, a visita de Lula é aguardada com muita expectativa pelo povo e pelos líderes cubanos. Ele desembarca na próxima sexta-feira (26) às 11h55 no aeroporto internacional Jose Marti e enfrentará durante dois dias uma jornada de encontros com empresários, políticos e dirigentes cubanos. Os mais importantes estão reservados para o presidente Fidel Castro e incluem um jantar no Palácio da Revolução, no mesmo dia, e um encontro privado, às 12h30 do sábado.
"Eles têm muito o que conversar e a agenda foi preparada para que os dois chefes de Estado utilizem ao máximo a oportunidade de discutirem à exaustão todos os temas possíveis de colaboração mútua", afirmou o embaixador brasileiro em Cuba, Tilden Santiago.
Embora os dois lados evitem falar no assunto, as dificuldades políticas de Cuba, sobretudo após as punições aos dissidentes, deverão ser tratadas em profundidade. O PT e o governo brasileiro têm posição diferente de Cuba em relação à pena de morte. "Brasil e Cuba têm processos históricos diferentes, que não podem ser analisados fora do contexto", explicou Tilden, amigo de Fidel e crítico contundente do bloqueio norte-americano ao país. Ele admite, porém, que os dois têm amizade e abertura para tratar de qualquer assunto, inclusive os mais sensíveis.
A reavaliação da pena de morte, porém, não será um ato unilateral. Ela virá como contrapartida às concessões que o governo norte-americano tem feito na questão da imigração, desde as execuções. Até então, os Estados Unidos tratavam como heróis, com direito a moradia e cidadania, os imigrantes que fugiam da ilha em embarcações, mesmo as roubadas. Desde os expurgos de abril, as negociações entre os dois países em torno de um acordo de imigração evoluíram e o governo Bush devolveu recentemente a Cuba um imigrante que chegara ao país em embarcação roubada.
Sufocada pelo bloqueio econômico dos Estados Unidos, que já dura quatro décadas, a economia cubana dá sinais de exaustão diante de tantas pressões. O número de suicídios vem crescendo – foram 1.500 nos últimos doze meses –, e o índice de alcoolismo aumentou consideravelmente. O governo está preocupado com o problema. Uma geração de jovens que nasceu depois da revolução e não tem dimensão das dificuldades dos pais no antigo regime perambula sem expectativa pelas ruas de Havana.
Todas as tardes, pode ser visto o espetáculo deprimente de grupos de jovens sisudos, sentados na mureta que margeia a praia de Havana Velha, chamada Malecon, devorando garrafas de rum. Entre eles, há também muitas prostitutas jovens disponíveis para programas em troca um punhado de dólares.
Devido à escassez, os cubanos se viram como podem para levantar algum dinheiro e complementar o orçamento apertado. Eles se concentram em locais de maior fluxo de turistas, como os restaurantes La Bodeguita Del Médio e La Floridita, famosos por terem sido no passado os preferidos do escritor norte-americano Ernest Hemingway.
É o caso de Paulina, que, por um dólar, se deixa fotografar com um enorme charuto na boca. Vale tudo por uns trocados: até encantar pombos na praça em frente ao prédio onde fica a embaixada brasileira.
O reverendo Raul Soares lembra que atentar contra a vida não é só pena de morte. "É também pobreza, miséria, negligência com a educação e a dignidade dos cidadãos. Esses são instrumentos de morte piores e condenam um número muito maior de pessoas no mundo inteiro", observa. Ele diz, todavia, que a situação política de Cuba não pode estagnar-se. "Deve continuar evoluindo, inclusive no que tange aos direitos humanos. Alguns avanços já ocorreram desde 1992 e precisam prosseguir".