Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Leia a seguir a segunda parte da entrevista com aantropóloga Carla Costa Teixeira, da Universidade de Brasília. Autora de estudossobre os processos de cassação no Congresso Nacional, ela confessa acuriosidade com o resultado das eleições de outubro. A candidatura de diversosenvolvidos nos casos “mensalão” e “sanguessugas”, diz ela, é um teste devalores para a sociedade brasileira: o que é mais grave, o caixa dois ou oroubo?“Se não houve uma mudança nahierarquia de valores”, afirma Teixeira, “o pessoal do ‘mensalão’ vai ter maispossibilidade de retorno do que os ‘sanguessugas’”. “O caso do ‘mensalão’ foiapresentado para a sociedade como caixa dois. Então, eu não roubei, eu nãoenriqueci, é que eu tinha dívida de campanha.” Agência Brasil – Nos seus textos, a sra. compara a situação donosso sistema, relativo às cassações, com o que ocorre em outros países.Lembra, por exemplo, que houve três cassações ao longo de toda a história dosEstados Unidos, enquanto aqui houve dezenas. Carla Costa Teixeira - Sim, é um escândalo a diferença. Na França,então, o legislativo não pode cassar, só quem pode cassar é o eleitor . ABr - Por que essa diferença? Do que ela advém e noque ela acaba resultando? Teixeira - Nós somos um país com uma cultura de honramuito mais forte que nos Estados Unidos e do que na própria França. Eles são deum individualismo moderno mais enraizado na sociedade. Nós temos uma facilidadede nos identificarmos com esses processos de vexame público. No Brasil, mesmo aqueles que foram absolvidos nasinvestigações por falta de decoro, ou renunciaram, têm dificuldades de voltar.Muitos se candidatam, mas têm muita dificuldade, porque o processo dehumilhação pública, de linchamento público que o processo de investigação cria,já é o suficiente para desmoralizá-los. O Ricardo Fiúza, por exemplo, voltou – não nas eleiçõesseguintes, só na outra. Ele não renunciou, terminou o mandato. Mas, quando elevoltou, voltou como um deputado federal inexpressivo, nunca mais teve umaposição de destaque dentro do Congresso. Morreu, e quase não se teve notíciadisso, a mídia não deu destaque. a imprensa escrita não deu destaque. O Ibsen Pinheiro, a mesma coisa, voltou como vereador emPorto Alegre. No caso do Fiúza, o processo foi arquivado. Com o Ibsen, foiaquele linchamento, uma coisa muito forte. E eu não estou criticando aimprensa, não, porque o procedimento é esse, é trazer às claras todas as acusaçõescontra essas pessoas. Esse é o traço desses mecanismos em que os valores moraisacabam impregnando a pessoa de uma maneira muito violenta. ABr – Agora, vários desses que estiveram envolvidosnas CPIs do ano passado estão tentando voltar. O que pode acontecer?Teixeira - Eu estou curiosa para ver se vão conseguir, porque o caso do“mensalão” aponta par a uma dinâmica que, dentro da hierarquia do decoro, estáabaixo do tipo de roubo da CPI do Orçamento e dos “sanguessugas”. O “mensalão”foi apresentado para a sociedade como caixa dois. Então, eu não roubei, eu nãoenriqueci, é que eu tinha dívida de campanha...Isso foi usado na CPI doOrçamento. O Genebaldo Correia (líder do PMDB na Câmara que renunciou parafugir do processo de cassação) usou isso: eu não enriqueci, eu aceitei essedinheiro para pagar as dívidas de campanha, e, afinal de contas, todo mundo fazisso. Tem uma qualidade moral distinta de você ganhar 10%, 15% em cima dosuperfaturamento de uma obra ou em uma ambulância, o apelo para a sociedade édiferente.Os cientistas sociais são péssimosem prognósticos, mas, se não houve uma mudança na hierarquia de valores dodecoro – e eu acho que não houve, mas a gente vai verificar agora nas próximaseleições -, o pessoal do “mensalão” vai ter mais possibilidade de retorno doque os “sanguessugas”.ABr – A renúncia é uma forma, então, de escapar daexposição pública? Aumenta a possibilidade de voltar à vida pública? Teixeira - Sim, você abrevia o linchamento publico, eledura menos tempo. De uma certa maneira, a sua visibilidade naquele cenáriodiminui. Agora, por outro lado, no momento eleitoral, em que esses candidatostêm que se expor num embate de conflito, uma pessoa que renunciou pode seracusada pelo outro de uma falta gravíssima, de uma desonra enorme, porque elase acovardou, não foi até o final pra provar que era inocente. Isso, para nós, é muito grave. Nos Estados Unidos, omovimento não é de expulsão, é para que você renuncie. É isso que eles querem,por isso há poucas cassações. Quando há investigações, tudo é feito para quevocê renuncie. Por isso, eles tiveram renúncias, mas não impeachment. Onosso procedimento, não. Nós somos muito mais parte de um código de honra. Éexposição, é mostrar a face, é provar que você não está envolvido. Ou, ir àdegola. ABr – Durante o escândalo do “mensalão”, os processosque resultaram na cassação de José Dirceu e Roberto Jefferson (este acusouaquele de chefiar um esquema de pagamento de mesadas a parlamentares em trocade apoio ao governo) introduziram alguma novidade nessa dinâmica? Teixeira - Esses processos remetem aos do ACM e doArruda (os então senadores pefelistas Antônio Carlos Magalhães e JoséRoberto Arruda, que renunciaram em 2001 para escapar a processos de cassaçãopor haver violado o painel de votaçãodo Congresso), porque ali, de fato, não havia nem dinheiro envolvido. O que estava em jogo era a quebra de um procedimento, dentrodo Senado, que garantia o sigilo do voto de cada um dos parlamentares. Então,eles terem acesso a quem votou, a favor ou contra a cassação do Luiz Estevão(ex-senador peemedebista, cassado em 2000, por acusação de envolvimento comdesvio financeiro na construção de tribunal em São Paulo), em termoséticos, é o fim da picada, é como se eu violasse o seu voto na urna. É muito grave isso, mas acabou não aparentando gravidadenenhuma. Parece que, dentro da hierarquia das quebras de decoro, isso é demenos – tanto é que os dois voltaram (ACM se reelegeu para o Senado, eArruda foi para a Câmara Federal, em 2002). Claro que o ACM tem de fato umaprojeção política, na Bahia, que não haveria de ser uma quebra do sigilo dopainel do Senado que iria derrubar. No caso do Jefferson e do Dirceu, é curioso, porque adimensão ética de todo esse processo de investigação do “mensalão” se deu muitomais porque o PT estava envolvido do que pelo tipo de procedimento. A chamada“crise ética”, como a imprensa toda denominou, se deu principalmente pelo fatode que o partido sempre se apresentou como sendo o guardião da ética, nuncatinha sido envolvido em nenhum processo de investigação dentro do CongressoNacional. ABr – E como você avalia o resultado desse processode investigação? Teixeira - Na época, se dizia, “caixa dois, quem nãotem?”, mas não sei em que isso resultou, em termos de cuidado institucional. Emvez de alterações no processo institucional, veio esse exagero da legislaçãoeleitoral.Em vez de aperfeiçoar a punição, cerceiam os procedimentosde campanha eleitoral, mas com um preciosismo que há até uma determinada medidamáxima para a pintura com propaganda eleitoral no muro das residências. Muitomais importante seria assegurar punições para os candidatos e os partidos queutilizam caixa dois. E o que aconteceu no “mensalão”? Poucos foram cassados. Oresto, os partidos tiveram que responder por isso. Agora, não pode usar botom,não pode usar camiseta com nome do candidato, a não ser que você faça umacamiseta... Houve uma saída pela tangente, diante de uma certa repulsa mesmo daimprensa e da população por esses procedimentos todos. A eleição estavapróxima, e fizeram esse remendo. ABr - Dessa situação toda, o que fica para o eleitoragora, às vésperas de mais um pleito? Teixeira - Acho que estamos passando por um momentocrucial da democracia brasileira. Como pensar uma democracia que tem mais de10% dos seus parlamentares indiciados por prática de corrupção? É muita gente.A sociedade civil tem uma responsabilidade, junto com os políticos, claro, deapontar possibilidades para a democracia brasileira, saindo desse aprendizadode duas décadas que nós temos de redemocratização, apontando para caminhosenriquecedores. Não que a gente esteja sob ameaça de ditadura militar, nadadisso. Mas, de um populismo, eu tenho medo. Há um espaço, hoje, para surgiremfiguras salvacionistas, quando é justamente o momento de fortalecer asinstituições. Não há saída democrática que não passe por isso. Agora, uma instituição combalida como o Congresso Nacional,mais de 10% dos seus membros indiciados, com provas sérias... CPI do Orçamento, eram 16. “Mensalão”, acho que eram 16também. Agora estamos com 70 e tantos no caso dos “sanguessugas”, e ainda vemmais. É um momento crucial, em que nos damos conta da fragilidade da nossasociedade civil. Acho que já acreditamos que ela era mais forte, com asmanifestações, por exemplo, contra o Collor, uma série de ONGs pelatransparência... ABr – O fato de que um quadro como esse no Congressoresulta exatamente de uma operação da Polícia Federal, agora essasinvestigações lá em Rondônia,envolvendo 23 dos 24 deputados estaduais... Issonão é representa um avanço institucional, estrutural? Teixeira -Isso é inegável. No atual governo, se passoude 9 mil agentes da Polícia Federal para 12 mil, e a meta é 15 mil. Sem dúvida,a Polícia Federal, hoje mais que o Ministério Público, tem tido um papelcrucial em apontar esse tipo de delito. Houve um avanço, inclusive com aentrada desses jovens todos que fizeram concurso mais recentemente para aPolícia Federal. São jovens de um outro nível. A Polícia Federal já foi um espaço mais de um exercício maistruculento do poder policial, hoje não é, tem toda uma inteligência. É bompoder dizer isso, mas, sem dúvida, gera apreensão. Se, por um lado, há essarobustez, poder investigar, ter liberdade para isso, sem ser barrado pelo PoderExecutivo ou quem quer que seja, se pensarmos bem, a PF não é exatamente ainstituição que pode sustentar um projeto democrático para o país.