Morales considera Lula uma espécie de mentor político, diz professor boliviano

22/01/2006 - 10h01

Alessandra Bastos
Enviada especial

La Paz (Bolívia) - O primeiro político de origem indígena a chegar à Presidência da Bolívia toma posse hoje (22) em uma cerimônia que contará com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de outros chefes de Estado. Evo Morales foi eleito em 18 de dezembro do ano passado com mais de 50% dos votos e vai governar um país carente de infra-estrutura e de reformas sociais.

Para falar sobre as expectativas do governo que começa e fazer uma análise das parcerias internacionais e dos primeiros passos dados pelo presidente boliviano, o cientista político Carlos Cordeiro, professor da Universidade Mayor de San Andrés, em La Paz (Bolívia), concedeu esta semana entrevista à Agência Brasil. Durante a conversa, Cordeiro falou das dificuldades que Morales pode enfrentar em seu governo. Afirmou também que o líder cocalero, agora presidente, considera Lula uma espécie de "mentor político" e que o boliviano segue à risca os conselhos dados pelo presidente brasileiro. Leia abaixo a entrevista.

Radiobrás: O que a eleição de Morales significa para a história da Bolívia e que outros acontecimentos históricos foram fundamentais para que um indígena chegasse à Presidência?

Carlos Cordeiro: A partir das eleições de dezembro de 2005, a Bolívia tem uma nova geografia política. Primeiro porque os partidos políticos tradicionais, que governaram o país nos últimos 20 anos, foram afastados. Evo Morales e o Movimento ao socialismo (MAS) deixam de ser uma minoria política e se convertem na maioria política, com a maior bancada no Congresso. A mudança não é só política, mas também no discurso da inclusão étnica. No Século XXI, isto é uma novidade, apesar de, na história da Bolívia, haver registros de governantes com forte raíz étnica. No início da República, em 1932, por exemplo, Andre de Santa Cruz Kalaiuwana, filho de uma mulher indígena e um cacique. Em 1952, temos a Revolução Nacional, que é a primeira tentativa de ruptura e de inclusão étnica do país. Até então, não eram considerados cidadãos e nao interviam nas políticas. A eleição de Morales significa a eleição do primeiro presidente indígena, a renovação da política continental. Um metalúrgico no Brasil, uma mulher no chile, um indígena na Bolívia. São a expressão das minorias políticas agora no poder. Eles têm o compromisso de levar adiante um processo de reformas e mudanças, não apenas na política, mas na economia e, fundamentalmente, no social: incluir grupos minoritários, geralmente excluídos dos benefícios do progresso, em uma nova forma de distribuiçao das riquezas.

Radiobrás: Este processo acontece, como citou, em vários países da América no mesmo momento. Por quê? Quais as conjunturas que estão levando a essa mudança governamental?

Cordeiro: Na teoria política existe a visão de que os países se movem debaixo de determinados ciclos. Na América Latina, existe uma corrente de reivindicações populares e a Bolívia não escapa disto. Parece que existe um certo movimento pendular, entre o autoritarismo e a democracia. E dentro da democracia, formas de governo que se pode denominar como de direita e também o surgimento de expressões de esquerda. Recentemente, os governos vem tendo promesas nao cumpridas, casos de corrupção, insatisfação social. De forma que o pêndulo eleitoral agora se inclina sobre essas expressões, que buscam fundamentalmente o aperfeiçoamento da democracia ou transformações profundas na democracia que antes não foram levadas adiante. Agora, supõe-se que se está inaugurando um novo ciclo onde as minorias e as reivindicações que não foram atendidas corretamente passam a se expressar. Em alguns lugares, é quase uma revolução da democracia, como é o caso da Bolívia. Há processos mais lentos como o do Uruguai, onde a esquerda teve uma base progressiva, e o do Brasil também, com sucessivas tentativas de chegar ao poder frustradas, até que finalmente se consegue. O denominador comum desses processos é que se realiza um marco na democracia, respeitando princípios e valores democráticos e, fundamentalmente, a participação do cidadão.

Radiobrás: A eleição de Morales pode significar o início de um preconceito contrário ao até então vigente, uma separação étnica ainda maior na Bolivia?

Cordeiro: Com a eleição de Morales, os movimentos sociais que pressionavam o Estado estão incluídos no governo. Os conflitos sociais não existem mais. Não há mais bloqueios de ruas com carreteiras, por exemplo. A oposiçao não sabe o que fazer, ainda está em choque por ter perdido as eleições. Não tem propostas inteligentes e estão totalmente desconcertados. Governar sem oposição pode ser perigoso. As suspeitas é de que sem oposição, se comece a desenvolver uma política como a de Chávez, de chegar ao poder por vias democráticas e governar com despotismo e autoritarismo. É perigoso também que se crie novas formas de exclusão e aqueles que até hoje estavam no poder, como brancos e empresários, se transformem em vítimas de uma espécie de vingança étnica. Para a democracia é perigoso. Governar sem partidos de oposição não é bom para a democracia. Se não há opositores, aqueles que discordarem de algo se tornam inimigos. Este é o primeiro sinal. Daí para uma censura de imprensa e dos meios de comunicação é um passo. Fujimori (ex-presidente do Peru), por exemplo, foi um governo autoritário democrático.

Radiobrás: No Brasil havia muita expectativa quando o Lula assumiu o poder. Esse clima é o mesmo vivido hoje na Bolívia. Seria correto comparar o processo dos dois países?

Cordeiro: Realmente na Bolívia há uma grande revolução com relação às expectativas cidadãs. Se está depositando muita ilusão e é bastante desejável que essas expectativas se cumpram. Mas existe o medo de que em um pequeno ou médio prazo possa haver uma profunda frustração nos setores populares diante de promessas não cumpridas. Não seria a primeira vez. Outros governos de direita, inclusive militares, chegaram ao poder com muitas ofertas e assumindo muitos compromisos de mudanças, distribuição das riquezas, luta contra a corrupção… e, logo, a realidade política dos interesses econômicos e dos compromissos prévios de alguna maneira colocaram limites nas questões estatais. Um dos grandes problemas que a Bolívia pode ter não é a falta de vontade política que hoje expressa o governo de Morales, mas sim as limitações de um Estado pobre, com recursos limitados, que apesar das expectativas de mudanças não tem os recursos humanos e econômicos. E também, o contexto internacional não lhe permite encarar essas mudanças. No entanto, até agora, o presidente Morales tem agido com muita habilidade, buscando aliados internacionais, garantindo a presença desses aliados na sua posse, que podem significar apoios importantes para materializar essas expectativas geradas. O outro elemento é uma economía que não é próspera, está saindo de uma crise com posibilidades de crescimento. A isso se associam recursos como gás, que é de interesse para a América Latina. E podem gerar recursos novos que serviriam como suporte para o governo de Morales fazer mudanças que não puderam ser feitas em outras oportunidades. O gás significa para a Bolívia uma oportunidade econômica que se coincide com um governo com vontade política e com um contexto internacional favorável. Há uma oportunidade interessante para se realizar as promessas eleitorais.

Radiobrás: Se entendi, Morales tem a faca e o queijo nas mãos ou você é um boliviano pleno de expectativas? É possível tirar todas as promessas do papel?

Cordeiro: Há posibilidades de fazer mudanças importantes, como melhores condições de vida, distribuição das riquezas, saúde, educação, fatores que historicamente foram restritos a um grupo e não à maioria. Agora, para fazer as mudanças estruturais, na economia, é preciso aprender com os vizinhos. Em relaçao ao Brasil, o que se pode fazer de maneira realista.

Radiobrás: A falta de experiência administrativa do Movimento ao Socialismo (MAS) pode se configurar um grande problema para o governo?

Cordeiro: Morales já falou de sua falta de experiência profissional. No entanto, tem demonstrado uma enorme habilidade política e levando adiante um processo de governo próprio, dispensando atores que, com títulos universitários, não tiveram o êxito eleitoral que Morales teve. Logo, suas primeiras atuações mostram também uma enorme habilidade para encontrar sócios e amigos de experiência e aporte econômico, como Venezuela, Cuba e Brasil.

Radiobrás: Fale mais dessa amizade com o Brasil.

Cordeiro: Lula é uma espécie de mentor político de Morales, ainda que não seja visível. Morales visitou Lula durante o processo eleitoral e, em algumas oportunidades, reivindicou conselhos que foram dados por Lula, principalmente a cautela, a perseverança e o realismo na política. Uma coisa é o discurso eleitoral, outra é a realidade de mercado que lhe permita avançar. Através do processo de aprendizagem, pelo comportamento de outros presidentes latino-americanos se vê o realismo. Acredito que Evo Morales é um disciplinado aluno desse tipo de comportamento.

Radiobrás: A posse de Evo Morales é o maior evento que a Bolívia já sediou em relação à atenção internacional - política e jornalística - que se voltou para cá?

Cordeiro: Sim, evidentemente. A última vez que a Bolívia recebeu tanta atenção do mundo foi há aproximadamente 50 anos, quando ocorreu a Revolução de 52, muito sangrenta, mas transformadora. Despertou muita atenção porque era como uma continuidade dos processos revolucionários muito fortes que estavam ocorrendo na América Latina, no México, Argentina… Foi um movimento teórico e político que significava um novo olhar sobre a economia da América Latina e sua contribuição para o mundo. Hoje, evidentemente, Evo Morales desperta esse interese não somente por sua origem étnica, mas pela forma de resolução dos problemas na democracia. Geralmente, os problemas étnicos na América Latina eram resolvidos com o uso da violência e não pela inclusão de maneira pacífica. O que podia gerar um efeito dominó para os outros países, ser um exemplo para outros, como o Peru e o Equador, e pode ser uma espécie de efeito-demonstraçao para outras realidades, como a africana.