Entrevista 1 - Juiz defende formação contínua contra entrada de jovens no crime

22/01/2006 - 8h18

Vitor Abdala
Repórter da Agência Brasil

Rio - Para alguns jovens brasileiros não há dúvida: entre tentar ingressar no concorrido mercado de trabalho formal ou partir para uma atividade aparentemente mais fácil e lucrativa, a segunda opção ganha disparada. Para o juiz-titular da Vara da Infância e da Juventude da cidade do Rio Guaraci de Campos Vianna, presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj), a decisão desses garotos não é incompreensível. "O tráfico de entorpecentes tem uma política de primeiro emprego que o Brasil deveria ter para os seus jovens", diz Vianna.

Neste primeiro trecho da entrevista à Agência Brasil, o juiz defende qualificação e promoção do emprego para a juventude brasileira, a fim de evitar as estatísticas da delinqüência infanto-juvenil que hoje atingem o país. Ele afirma também que com mais vagas no sistema socieducativo o país conseguiria recuperar a maioria dos jovens infratores.

Agência Brasil: Como o senhor avalia o sistema socioeducativo brasileiro?

Vianna: Ele não funciona como um sistema, na medida em que a maioria dos estados não consegue executar as existem 14 medidas socioeducativas existentes. E, de um modo geral, a mídia e a sociedade como um todo julgam o sistema só pela unidade fechada [de internação]. E a unidade fechada é apenas a UTI [Unidade de Terapia Intensiva]. Você pode chegar ao sistema socioeducativo sem passar pela internação, como pode iniciar com a internação e sair para outros estágios, como o regime semi-aberto, o regime aberto com liberdade assistida e medidas alternativas, como prestação de serviço à comunidade, reparação do dano, limitações dos finais de semana etc.

Então, nós temos medidas de projetos especiais, que são de tratamento psicológico e programa de justiça terapêutica. No município do Rio de Janeiro, nós conseguimos implantar praticamente todas as medidas socioeducativas e, por isso, nosso índice de recuperação dos jovens é superior a 50%. Em algumas medidas, chega a 90%. Em outros municípios do Rio, não há condições de implantação de todas as medidas. E aí as dificuldades começam a operar. No Brasil, não há um município que tenha conseguido implantar o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] , na área socioeducativa, com todas suas nuances e propostas. Se o ECA for implantado, é quase impossível você não recuperar os jovens, a não ser aqueles que se recusam a mudar seu comportamento.

ABr: Quais as dificuldades em implantar essas medidas alternativas à internação?

Vianna: Vamos fazer uma comparação com o sistema adulto. Toda vez que se pensa em construir uma unidade prisional, ninguém pensa em construir uma unidade no regime aberto ou semi-aberto. Pensa só no isolamento, no fechado. As pessoas pensam: o sistema penitenciário está falido. Não está falido. Simplesmente não há sistema, porque você só pode julgar o sistema analisando de uma ponta à outra.

No sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, por exemplo, o número de vagas do regime semi-aberto não é compatível com o do sistema fechado. Aqui, nós temos mil vagas no regime fechado, 1,2 mil no regime aberto e não mais de 360 no regime semi-aberto. Então, acontece uma represa. Às vezes, a pessoa fica em condições de estar no regime semi-aberto e não passa porque não tem vaga. Ou o que é pior: a pessoa fica menos tempo no regime semi-aberto para poder abrir vaga para o pessoal do regime fechado. Em alguns estados, não temos nem regime semi-aberto. E a ponte de transição, entre o fechado e o aberto, é indispensável para a recuperação do jovem.

ABr: Sem o funcionamento pleno desse sistema, a medida socioeducativa, então, fica prejudicada?

Vianna: Aqueles que conseguem passar pelo processo socioeducativo têm uma facilidade maior de ser reinseridos na sociedade, mas a maioria dos jovens, infelizmente, não passa. Se nós tivéssemos mais vagas, conseguiríamos recuperar a maioria dos jovens. E, com isso, diminuía o problema da violência. É uma questão de inteligência estratégica. É mais inteligente recuperar um adolescente infrator do que um adulto criminoso. Primeiro, o adolescente infrator será devolvido à sociedade de uma forma útil e produtiva. Segundo, dos 300 mil presos que existem hoje no Brasil, cerca de 200 mil vão sair nos próximos anos. Qual é a perspectiva que um ex-presidiário tem neste país? Quem daria para ele um emprego de faxineiro? Ou de vigilante? De segurança? De boy? O que esses 200 mil vão fazer? Se eles não voltarem a delinqüir, estarão no grupo informal: camelô, biscateiro etc.

ABr: O senhor citou que, no Rio, por exemplo, as vagas do sistema socioeducativo são insuficientes. Quantas seriam necessárias?

Vianna: Precisaríamos duplicar a quantidade de vagas no regime semi-aberto e no regime aberto. Teríamos também que ter investimentos maciços em projetos de formação para o trabalho, de políticas de primeiro emprego. O tráfico de entorpecentes tem uma política de primeiro emprego que o Brasil deveria ter para os seus jovens: não discrimina, não exige qualificação prévia, tem um plano de carreira definido, tem uma remuneração satisfatória e permite que o jovem chegue ao topo. Ao passo que, no sistema formal de inclusão do trabalho, não temos qualificação para todos. Sem qualificação, não tem vaga. Então, a remuneração não é satisfatória. E o jovem não tem perspectiva de futuro. Se ele tem uma vaga de contínuo, ele não tem a expectativa de chegar a chefe dos contínuos. Deveríamos fazer uma política de educação, de formação profissional, de formação técnica, para permitir ao jovem, sobretudo, uma formação continuada.

ABr: Esse problema se repete em outras capitais?

Vianna: Esses problemas são mais acentuados nas outras capitais. Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre estão mais avançadas em relação ao resto do país, em termos de qualificação dos jovens, e mesmo assim os problemas são grandes. Mas acredito que nas outras capitais as dificuldades são maiores.

ABr: Essa idéia de privar o jovem da liberdade é algo ultrapassado? Ou não há outra forma de lidar com os infratores mais graves?

Vianna: O que existe é uma mistificação da internação. Se você perguntar hoje, para a sociedade civil, eles vão dizer que a internação não funciona, que é uma escola de crimes. Essa idéia de que o jovem aprende a praticar o crime na cadeia não funciona para os primários, que são nossa maior clientela – quase 4 mil de 6 mil jovens. Em qualquer outro lugar se aprende a praticar crimes, haja vista a primeira internação. A segunda questão, que as pessoas pensam, é que o jovem sai da internação e vai para a rua. Não há um esclarecimento a respeito de um processo socioeducativo. A internação é uma medida a que se seguem outras. Ela é necessária para a recuperação e, diria, às vezes, é o melhor recurso, porque você precisa tirar o jovem daquele ambiente que o perverteu. E funciona, inclusive, como um instrumento de persuasão para aquele que não precisa ser internado: "Olha, se você não cumprir a medida, você vai ser internado". O que eu sou contra é a internação como um remédio para todos os males.