Transferência de renda para os ricos impede desenvolvimento do país, avalia especialista

24/08/2005 - 10h50

Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Para o economista Marcio Pochmann, da Universidade de Campinas, o Brasil mantém hoje duas políticas opostas de transferência de renda. Uma é a de programas como o Bolsa Família, que auxiliam hoje, segundo ele, 10 milhões das famílias mais pobres do país. Outra é a manutenção das altas taxas de juros para os títulos da dívida pública, que consomem por ano mais de R$ 100 bilhões e beneficiam apenas 20 mil famílias ou clãs.

Pochmann avalia que a manutenção desse padrão no Brasil e na América Latina pode ter conseqüências negativas não só para o desenvolvimento econômico, mas também para a democracia no continente. Leia a seguir a terceira e última parte da entrevista concedida à Agência Brasil.

Agência Brasil - Como os programas de transferência de renda se relacionam com o contexto de uma política macroeconômica restritiva, ou seja, juros altos com a justificativa de assegurar o controle de inflação, cortes nos investimentos públicos para garantir pagamento da dívida interna etc.?

Marcio Pochmann - A imagem que eu tenho é que os programas de transferência de renda provocam uma espécie de choque redistributivo e colocam recursos em setores que têm, na maior parte das vezes, enorme dificuldade de participar de uma onda de crescimento econômico. O crescimento econômico ocorre, e os setores mais rápidos em se apropriar desses ganhos são geralmente de classe média, setores organizados.

As famílias mais pobres demoram mais tempo para ter acesso aos frutos do crescimento econômico. Então, os programas de transferência de renda são importantes, provocam o choque distributivo localizado e, na medida em que há crescimento econômico, as famílias conseguem, portanto, ter um resultado mais efetivo, já que, no Brasil, a tradição é que, quando há crescimento econômico, em geral, os frutos do desenvolvimento não são bem repartidos.

Por outro lado, quando nós temos uma política macroeconômica que restringe o crescimento econômico, que posterga as decisões de investimento em função das taxas de juros, esse ganho localizado das famílias mais pobres termina sendo importante mais como um efeito anticíclico de uma ação mais recessiva, do que, na verdade, como uma medida potencializadora de uma ampliação dos efeitos do crescimento econômico.

ABr - O Brasil gasta alguns bilhões de reais com a transferência de renda, enquanto paga anualmente quase R$ 150 bilhões para rolar suas dívidas. Quais as implicações desse modelo para o país?

Pochmann - De fato, essa é uma polarização que nós temos no Brasil e que vem, de certa maneira, durante os últimos 20 anos de transição democrática, que nós estamos vivendo.

Nós temos, para simplificar, como que dois tipos de transferência de renda. Uma é a transferência de renda para as pessoas mais pobres: no Brasil nós estamos hoje em torno de dez milhões de famílias que recebem programas de transferência de renda, seja do governo federal, estadual, ou municipal. O volume de recursos que é transferido para esses dez milhões de famílias equivale a alguma coisa como 0,3% do PIB nacional, transferido anualmente.

Quando nós comparamos os recursos que são transferidos às famílias muito ricas, que são credoras dos títulos públicos, que não passam de 20 mil clãs, famílias no Brasil, elas estão se apropriando com algo equivalente entre 7 e 8% do Produto Interno Bruto.

Isso, de certa maneira, revela o caráter ainda anti-social que permanece na política financeira e monetária. É uma herança que vem do regime militar, e a expectativa é que a democracia brasileira possa colocar, em alguma medida, uma interrupção nessa forma de transferência de renda que ajuda o endividamento a se manter e obstaculizar o crescimento econômico nacional.

ABr - Esse modelo parece ser comum na América Latina. Quais podem ser as decorrências, no contexto continental?

Pochmann - É um quadro de acomodação, no meu modo de ver, insustentável. O que dá sustentabilidade a médio e longo prazo é o próprio crescimento econômico gerador de empregos, e o que nós temos são medidas pontuais. Cada vez mais pesquisas mostram, inclusive, o grau de insatisfação da população, em função do fato de o regime democrático não ser capaz de transformar de forma sustentada o ambiente de vida do cidadão mais comum.

Nesse sentido, eu acho que, inclusive, as políticas de transferência de renda para o setor financeiro, no Brasil e na América Latina, no contexto mais amplo, revelam uma situação de obstáculo não só ao crescimento econômico, mas, sobretudo, à própria manutenção do regime democrático.