Lutas na Bolívia antecedem a convocação da Constituinte, explica militante popular

09/03/2005 - 11h11

Mylena Fiori
Repórter da Agência Brasil

Brasília - A pressão dos movimentos sociais foi uma das justificativas apresentadas pelo presidente boliviano, Carlos Mesa, para sua renúncia. Mesa assumiu em 2003 quando o então presidente Gonzalo Sanchez de Lozada deixou o governo também pressionado pela população, após violento protesto contra a exportação de gás para os Estados Unidos.

O histórico de lutas dos movimentos sociais bolivianos inclui outra vitória importante: a reestatização do serviço de fornecimento de águas na cidade de Cochabamba após a chamada Guerra da Água, em 2000. Em janeiro deste ano, mais uma luta bem sucedida: após manifestação pacífica de 3 dias, o governo suspendeu o contrato com a maior transnacional do mundo no ramo de serviços de água, a Suez- Águas de Illimani, responsável pelos serviços de água em El Alto, região metropolitana de La Paz.

Agora, mais uma vez, os bolivianos saem em defesa de seus recursos naturais. Com apoio da Oposição liderada pelo líder esquerdista Evo Morales, os movimentos sociais pedem que o governo reveja contratos assinados com empresas estrangeiras e reassuma o controle da exploração dos recursos naturais, especialmente dos hidrocarbonetos.

Nesta entrevista exclusiva à Agência Brasil, a ativista boliviana Maria Esther Udaeta - membro da Comissão para Gestão Integrada da Água na Bolívia - contextualiza as lutas dos movimentos sociais bolivianos. De passagem pelo Brasil participando de seminários e debates sobre a privatização dos recursos hídricos, Maria Esther comenta o caso Cochabamba, confirma as pressões sobre o atual governo e se declara preocupada, enquanto cidadã, com a governabilidade de seu país.

Agência Brasil: Qual o impasse, hoje, na Bolívia?
Maria Esther Udaeta: O problema central, hoje, é o gás. Desde 2003, com a saída do antigo presidente, havia um compromisso com a questão do gás. Este problema foi agora explicitado internacionalmente porque o presidente apresentou sua renúncia. Deve ser promulgada uma lei para exploração e exportações de gás por parte das empresas estrangeiras e há uma resistência muito grande dos movimentos sociais , um temor de que esta lei não recupere totalmente a propriedade pública do gás. Também questiona-se os impostos que devem pagar as empresas. As concessões petroleiras foram feitas sob um marco legal que não se conhecia, os contratos e as negociações não foram transparentes. Agora se debate o conteúdo destes contratos e se pede que os marcos legais sejam rediscutidos por toda a sociedade. Não é possível que a Bolívia, com a quantidade de recursos naturais que tem, tenha níveis de pobreza tão grandes.

ABr: Quais são as demandas dos movimentos sociais bolivianos?
Maria Esther: Na verdade, o problema do momento é o gás, mas estamos preocupados com a questão dos recursos naturais: o tema da terra, da água, do gás, dos recursos florestais. Todos estes temas estão sendo revistos pelos movimentos sociais porque vamos atravessar uma Assembléia Constituinte.

Estamos em um processo no qual temos que definir o que queremos para nosso país e, sobretudo, que soluções vamos buscar para nossos problemas. Aplicamos o modelo neoliberal com todas as normas legais e não colhemos frutos disso. Há mais pobreza, mais conflitos sociais, muita polarização. Não queremos mais o modelo que foi aplicado. Queremos outro modelo e a Bolívia está nesse dilema. O presidente Carlos Mesa está muito pressionado.

ABr: Pelos movimentos sociais?
Maria Esther: E por todo o contexto internacional. Bolívia é um país tão pequeno e tão pobre, tão mal-tratado. Este presidente herdou muitos problemas que não são resolvidos há muitos anos.

Ele não tem um partido político, tem uma certa popularidade...mas fez parte do antigo governo como vice-presidente. Há diferentes opiniões e posições que vão desde que o que o apóiam até os que querem que ele saia. Não há uma tendência. Mas os movimentos mais fortes não querem que saia, queremos é que a lei beneficie primeiro os bolivianos.

ABr: Há também a pressão das empresas estrangeiras instaladas no país...
Maria Esther: As empresas passaram a alegar que não têm segurança jurídica para fazer investimentos. Dizem que sairiam prejudicadas com esta lei e que teriam que se retirar do país. Por outro lado, não querem sair pois já investiram muito.

ABr: E o movimento pela autonomia das diferentes regiões do país?
Maria Esther: Sim, há movimentos regionais do oriente, do ocidente, dos diferentes departamentos que estão pedindo uma descentralização. Temos um sistema unitário e querem autonomia. Este é um debate cotidiano. Estamos realmente pressionados não só externamente, mas também internamente na busca de soluções. Há muita instabilidade o que compromete a governabilidade. Isto me preocupa como cidadã.

ABr: A luta de Cochabamba é um exemplo a ser seguido?
Maria Esther: O movimento de 2000 foi muito importante pois conseguiu mudar a lei que havia aberto as portas à privatização da água desprezando formas de gestão administrativa da água segundo a lógica social, que não é a lógica da privatização. Segundo a cultura campesina indígena, a água não pode ser comprada e vendida como uma mercadoria. Depois da mobilização social de 2000, o serviço de fornecimento de água voltou para as mãos de uma empresa pública que agora enfrenta problemas, pois herdou uma dívida muito grande. Além disso, todo o planejamento feito anteriormente seguia critérios não eqüitativos de fornecimento de água, se priorizou certos extratos sociais com maior poder aquisitivo. Estão tentando mudar isto, mas não é fácil. Há avanços, mas não ainda não os que são necessários. E, infelizmente, este caso é utilizado como mau-exemplo. Não deveria ser assim.