Escravidão contemporânea em debate na Agência Brasil

28/09/2007 - 10h52

Paulo Machado
Ouvidor da Radiobrás
Brasília - Escravos contemporâneosnão sãovistos compesadas bolasferro acorrentadas aos tornozelos. As amarrasque retêm trabalhadoresaprisionados em propriedadesrurais sãomuito maissutis: uma conta sempredevedora a favor do patrãoou a retençãode documentos pessoais.Esses sãoos motivos quelevam à maioria dos casosde privação de liberdadeencontrados pelos auditoresdo Grupo Especialde Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), relatados nas matériasda Agência Brasil sobreo assunto.Entre 30 de maio e25 de setembro de 2007 a Agência publicou 35 matériase um infográfico sobretrabalho escravo.Uma delas, Libertadosno Paraná 28 trabalhadores rurais em situação análoga à de escravos, publicada em 10de julho, foi motivo da mensagem enviada pelo leitor João Guilherme Duda, queconsiderou o texto da reportagem “contraditório com a sua manchete”. Ele diz:“No texto fala-se em desrespeito a normas trabalhistas. Na manchete fala-se emlibertação”. O leitor pergunta se foi constatado que os trabalhadores estavampresos a dívidas, tal como ocorre no Pará? Ou houve mero trabalho informal edesrespeito à NR-35/MTE? Tentou-se ouvir os advogados da empresa? Por fim,conclui o leitor: “É verdade que todo o trabalho rural informal é visto peloMPT [Ministério Público do Trabalho]como análogo ao escravo, mas o jornalista não pode ampliar o exagero de uma daspartes de um contencioso judicial para extremar e falar em ‘libertação’”.A AgênciaBrasil deu a seguinte resposta: “Nãohá contradição entreo título e o conteúdoda reportagem. Conforme o relato, os trabalhadores viviam situaçãoexata quecaracteriza o trabalho escravocontemporâneo, no entenderdos organismos internacionaise da legislação brasileira.Cito um trechoda reportagem: ‘um deles mantinha os trabalhadores emsituação de servidãopor dívidae o outro, porretenção dolosade documentos’".Para esclarecer ao leitor o uso deexpressões comotrabalho escravoe libertação, a redaçãoda Agênciase refere a “organismos internacionais” e à “legislaçãobrasileira”. No entanto,nas matérias os leitoresnão encontram essa informação,daí talvez decorrerem as dúvidas levantadas peloJoão Guilherme.Quais são os direitos dos trabalhadoresconsagrados na Convenção da Organização Internacionaldo Trabalho (OIT), da qualo Brasil é signatário? Quais são os conceitos de trabalho escravo, trabalhodegradante e privação de liberdade, entreoutros, definidosna Convenção? Seria interessante produzir matérias didáticas explicando isso,pois há sempreuma tentativa de advogadosde defesa de proprietáriosflagrados pela Justiçado Trabalho, emprovável situaçãode desrespeito à lei,de manipular essesconceitos e transformaro assunto emuma discussão lingüísticaem suasdeclarações à imprensa.Na matériaTrabalhadores escravos libertados relatam vida na"prisão", publicada em 4 de julho, a assessoriade imprensa da Pará Pastoril Agrícola (Pagrisa) alega não utilizar “trabalhadoresem situação análoga à escravidão”. Na coberturada Agênciatambém faltauma matéria didáticado tipo "Entenda qual é o papel do Estado na fiscalização do trabalhoescravo", explicando como são feitas as fiscalizações e quaisos instrumentos e recursosutilizados, além de quaisas possíveis puniçõesprevistas na lei paraos condenados. Seria importante ainda recuperar o caso dos fiscaisdo trabalho assassinados na estradade Unaí-MG. Ele é simbólico de como tentar inibira ação fiscalizatória do Estado,já queesta semana o assuntovoltou à pauta da Agência com a matéria “Desqualificada” por senadores, fiscalização contratrabalho escravo suspende atividades, publicada em 24 desetembro.A notíciade que a Secretariade Inspeção do Trabalhodo Ministério do Trabalhoe Emprego (MTE) suspendeu por tempo indeterminado as açõesdo Grupo Especialde Fiscalização Móvel, depois que uma Comissão TemporáriaExterna do Senado“desqualificou” o trabalho dos fiscaisfederais, dá a dimensão do quadro político-institucional queenvolve a questão. Masas razões quelevaram o governo, sobpretexto de “interferênciaspolíticas”, a suspendera fiscalização de uma política pública do Estadobrasileiro nãoficaram claras. O assuntovinha sendo tratadodesde 1° de agosto,quando a Agência publicou a matéria Comissão condena pressão sobre grupo que combate trabalhoescravo, na qual expunha a discussão sobre a ação doEstado brasileiro no combate ao trabalho escravo. Trazia o endereço para oleitor acessar a íntegra de uma nota de apoio às atividades do grupo assinadapelos integrantes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo(Conatrae). Mas a matéria fala apenas que a nota foi motivada “pelas pressões sofridaspelo Grupo Móvel após operação na empresa Pagrisa”. Quais foram essas pressõese feitas por quem não é informado. As matériasconseguem contextualizar o assuntocom basenas relações de produção,pelas quais o trabalhadorteoricamente tem a liberdade de vender sua mão-de-obra para quem quiser, porum preçojusto, desdeque haja ofertasuficiente de emprego.Esse, porém,não é o casodos municípios de ondese origina a maior partedos trabalhadores libertos.A reportagem mostra comoa falta de condiçõesde trabalho e rendaleva as pessoasdessas localidades a serem capturadasfacilmente por propostas“tentadoras” de emprego feitas pelos “gatos”, contratados pelosdonos das fazendaspara agenciar trabalhadores. O casoemblemático da ParáPastoril Agrícola(Pagrisa), que deu origemà atual polêmicaentre o grupode fiscalização e os senadores, foi tratado em 15das 35 matérias analisadas pela Ouvidoria. Nas 15 matériasforam ouvidas 27 fontes. Dentre elas, 11defenderam a empresa. Alémde quatro fontesda própria empresa,a Comissão TemporáriaExterna do Senadoe seus integrantesforam citados quatro vezes; o ministrodo Trabalho e a assessoriado MTE, duas vezes; e a presidente da OAB do Pará,uma vez. Entreas fontes quedenunciaram o emprego de mão-de-obra escravaestão: o coordenador do grupo móvel (quatro vezes); o coordenador da Campanhade Combate ao Trabalho Escravo da ComissãoPastoral da Terra(CPT) (duas vezes); umtrabalhador libertado; a secretária da Secretariade Inspeção do Trabalhodo MTE; a assessoria de imprensa da Procuradoriada República no Pará;a Comissão Nacionalpara a Erradicação do TrabalhoEscravo (Conatrae) e um dos seus integrantes, querepresenta a ONG Repórter Brasil; acoordenadora do Projeto de Combate à Mão-de-ObraEscrava da OIT; a BR Distribuidora daPetrobrás (numa nota); o secretário da Fazendado Estado do Pará;o ministro da SecretariaEspecial dos DireitosHumanos; e o presidenteda Associação Nacionaldos Magistrados da Justiçado Trabalho. A quantidade e a diversidadede fontes ouvidas pela reportagem mostram uma cobertura equilibrada eaprofundada sobre o caso. No dia25 de setembro as matériastrataram de repercutir a decisãotomada pelasecretária de Inspeçãodo Trabalho, Ruth Vilela, de suspendero trabalho do grupode fiscalização. A reportagem ouviu na matéria: Lupi afirma que fiscalização contra trabalho escravo seráretomada quando houver “segurança”, o ministro doTrabalho, Carlos Lupi, que não garantiu o funcionamento do grupo de trabalho edeclarou que os fiscais voltarão à ativa quando se sentirem seguros. Mas amatéria não explica por que os fiscais estão se sentindo inseguros nem qual é aresponsabilidade do ministro em relação à segurança de seus subordinados. Namatéria, o ministro dá a seguinte explicação: “O trabalho foi suspenso porquehouve uma pressão muito forte na Pagrisa do Pará, que fez com que os auditoresse sentissem inseguros no seu trabalho”. No entanto, o argumento deixa o leitormais uma vez sem saber no que se constitui essa “pressão muito forte” de umaempresa privada sobre o governo e quais ameaças deixaram os auditores inseguros.O jornalismo tem a obrigação de informar e o cidadão tem o direito de serinformado quando e como a autonomia do Estado e a segurança de seus servidoresestão ameaçadas.A coberturada Agênciapode aprofundar a apuração e explicarquais sãoas atribuições de uma Comissão TemporáriaExterna do Senadoe também quala relação dos cinco senadoresque constituem a comissãocom as bancadas de interesse* de queparticipam. O cidadão precisa dessas informaçõespara entender o papel desempenhado pelossenadores quevisitaram a fazenda da Pagrisa, depois foram recebidos peloministro Carlos Lupi e desqualificaram aatuação do grupodo Ministério do Trabalhoe Emprego, levando à paralisação de suasatividades. Também seria importante para o cidadão saber quais os projetos pendentes de aprovação no Congresso Nacional sobre o tema, como é o caso da PEC do Trabalho Escravo que aguarda há três anos para ser votada.O debate continuará nospróximos dias nas matérias da AgênciaBrasil sob a vigilância atenta de seus leitores até que o episódio sejaesclarecido. Até lá não haverá notícias sobre a suposta libertação de escravosno Brasil do século XXI. Até a próxima semana.* [Bancada de interesse,segundo o cientista político Edélcio Vigna de Oliveira, é uma bancadasuprapartidária, um grupo de interesse incomum, pois atua dentro do Estadosendo parte do aparelho de Estado. Porém, seus fins são os mesmos de qualquergrupo social de interesse: atuar em favor de interesses setoriais. Todavia,essa bancada interfere diretamente no processo decisório. Tornando-se, assim,um grupo de pressão.]