Elaine Cruz e Paulo Montoia
Repórteres da Agência Brasil
São Paulo - Qual a importância da veiculação, na televisão brasileira, de um vídeo em que um homem encapuzado lê um comunicado à população, como ocorreu na madrugada do último dia 13? Que implicações há e o que nos suscita a transmissão, pela TV Globo, da fala de um integrante da facção Primeiro Comando da Capital (PCC)? Essas foram algumas das questões levadas à socióloga e antropóloga Esther Imperio Hamburger, professora do Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Para ela, a veiculação de um manifesto de criminosos coloca em questão a importância do “controle do que vai ao ar hoje em dia”. A professora acrescenta: “Quem não aparece tem o poder. E, em geral, quem está precisando aparecer é quem tem menos poder”.Agência Brasil: Você já tinha visto algo assim na TV brasileira?Esther Hamburger: Nunca tinha visto no Brasil, mas isso tem acontecido fora do país. Expressa uma tendência no mundo hoje, que é a da maneira de se construir a notícia para ficar cada vez mais acessível, de uma maneira ou de outra. Eles foram capazes de produzir um vídeo porque a tecnologia digital permite isso. Eles usam técnicas de seqüestro para colocar isso no ar.ABr: O que você achou da presença do seqüestrador na TV?Hamburger: Acho uma coisa bastante preocupante. Expressa uma tensão crescente, que vem crescendo em São Paulo nos últimos dois meses de maneira assustadora. Já era assustadora antes de chegar à TV, mas chegando na TV fica ainda mais assustador porque fica claro que não está confinada a bairros distantes como algumas pessoas poderiam pensar. É uma violência que está generalizada, que está disseminada e que age de maneira fragmentada e atinge as instituições a ponto de chegar na TV. É muito preocupante.ABr: Você julgou acertada a decisão da Rede Globo de transmitir o vídeo com o manifesto dos seqüestradores?Hamburger: Eles transmitiram de madrugada. É muito difícil julgar isso. Não tenho muita capacidade para julgar isso, não é da minha especialidade. Do ponto de vista da emissora, ela protegeu o jornalista. E botou no ar de madrugada. O interessante é que ninguém repetiu. Há um tempo atrás, as emissoras estavam mais desavisadas em relação a esse tipo de ação e em geral tendiam a repetir indefinidamente imagens dramáticas. Nesse caso, parece que o limite foi atingido. E o sinal maior de que o limite foi atingido é que ninguém repetiu as imagens.ABr: Pode abrir um precedente na TV brasileira?Hamburger: Não sei. Não tenho como saber. Essas formas de ação, como as queimas de ônibus, são de guerrilha urbana e estão mimetizando ações que acontecem em outras partes do mundo. Com conteúdos diferentes, significados diferentes, mas com formas de atuação semelhantes. Há diferentes níveis em que você pode abordar esse tipo de situação. Existe o local, em que a melhoria das condições das prisões e a resposta firme e dentro da lei, sem nenhum abuso policial, nos fazem esperar que se melhore a situação. Por outro lado, é um crime organizado que faz parte de fluxos internacionais, como o tráfico de drogas e o de armas, não são instituições brasileiras. Há fluxos internacionais, transnacionais, que pedem respostas transnacionais. Os governos precisam tomar atitudes conjuntas com relação a esse tipo de organização. O mundo globalizado pode parecer algo abstrato, mas a gente está vivendo isso na carne. Não é uma entidade abstrata. Quando a gente vê formas de ação violentas, que se inspiram em coisas que acontecem em outros lugares e que têm conexões, você vê que estamos absolutamente conectados. É interessante contrastar essa organização criminal com a desorganização estatal – fica um pouco amedrontador.ABr: O que deve ser repensado?Hamburger: Tudo. A gente precisa de instituições internacionais que dêem conta de lidar com organizações transnacionais. Outra coisa: as imagens, a guerra pelo controle. As disputas políticas hoje em dia, no mundo, se dão muito através da disputa pelo controle das imagens que vão ao ar na TV e no cinema. O que a gente viu foi um evento cabal, de uma disputa. Há pouco tempo mesmo a TV Globo colocou no ar o documentário Falcão, Meninos do Tráfico, do MV Bill e do MV Athayde, que são moradores da Cidade de Deus, fundadores da Central Única das Favelas. Foi um fato inédito, um filme feito por moradores da Cidade de Deus e que foi ao ar em cadeia nacional, num domingo à noite. Isso já é uma expressão de uma diversificação do controle de quem faz a imagem, de quem produz que imagem, como e aonde ela vai ao ar. E isso que a gente viu agora foi mais um evento de uma produção perversa, ao contrário do outro.ABr: Você assistiu à transmissão do manifesto dos seqüestradores na TV? O que achou do vídeo?Hamburger: Eu vi. Uma coisa interessante é que o texto do vídeo é de um jurista. É uma colagem, uma bricolagem de repertórios. Você tem o personagem mascarado, que tem aparecido nos documentários mais recentes produzidos na retomada do cinema brasileiro. Nessa retomada, o personagem mascarado é recorrente, aparece em vários filmes. É como se esse personagem que estava no cinema e na TV de repente ganhasse a sua própria voz e vida de uma maneira muito perversa, lendo um texto que é produção de um jurista e cometendo um deslize interessante, lendo “ilusionista” ao invés de “iluminista”. É um deslize bastante significativo. Há uma disputa pelo controle da representação. E as imagens nunca desempenharam um papel tão central na vida e no mundo como elas representam agora. Nesse caso, o Brasil tem exemplos bem de ponta. Seria ótimo se essa discussão saísse do âmbito da crítica de cinema ou da crítica de televisão e ganhasse um âmbito mais geral, que as agências financiadoras de pesquisa, os jornais, as revistas, as emissoras e os realizadores se dessem conta da centralidade que a visualidade tem na nossa sociedade. Para mim, é sobre isso que esse seqüestrador está falando. O que ele me diz, além da instabilidade que o fato expressa, é de como é central o controle do que vai ao ar hoje em dia. O controle do que vai ao ar, quando e aonde, talvez seja a moeda de maior valor na sociedade contemporânea. Quem aparece, aonde e como. Quem não aparece tem o poder. E, em geral, quem está precisando aparecer é quem tem menos poder.