Brasil não está fazendo reforma agrária, acredita ex-relator da FAO

05/03/2006 - 9h16

Lana Cristina
Repórter da Agência Brasil

Brasília – A política de assentamentos do governo federal não representa um programa de reforma agrária para o país, critica o advogado Plínio de Arruda Sampaio, que foi responsável pelo projeto de reforma agrária do governo João Goulart, em 1963. Quarenta anos depois, Sampaio teve papel semelhante no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, coordenando o Plano Nacional de Reforma Agrária. Entre um período e outro, foi relator da questão dentro da Organização Mundial para a Alimentação e Agricultura (FAO, pela sigla em inglês).

Sampaio se diz insatisfeito com o programa de reforma agrária conduzido no governo Lula, que não teria enfrentado o problema da concentração de terra. Também criticou o que considera um número pequeno de famílias assentadas. "Não é um programa de reforma agrária porque não está afetando a estrutura do poder econômico, político e social do campo brasileiro".

O ex-relator da FAO elogiou a iniciativa da entidade de voltar a debater a reforma agrária em uma conferência internacional, que tem início amanhã (6) em Porto Alegre. Desde 79, a FAO não realizava uma conferência internacional sobre o tema. "Trabalhei 10 anos lá, em programas de reforma agrária e, naquela época, a FAO realizava periodicamente uma reunião mundial para examinar o avanço do fenômeno". Mas, segundo ele, após "a vitória do neoliberalismo", os países desenvolvidos pressionaram a FAO a não tratar mais do assunto.

Agência Brasil: A conferência da FAO traz de volta aos fóruns internacionais o tema da reforma agrária. O que o senhor acha disso?
Plínio de Arruda Sampaio: Eu avalio que esse é o resultado do desastre que foi o neoliberalismo dos anos 80 e 90. O que a FAO está reconhecendo é que o caminho que ela tomou por pressão dos países que a financiam, durante os anos 80 e 90, estava completamente errado e ela volta agora a fazer o trabalho de promover a reforma agrária.

Eu trabalhei durante 10 anos na FAO, em programas de reforma agrária. Na época, a FAO realizava periodicamente uma reunião mundial para examinar o avanço da reforma agrária e publicava relatórios importantíssimos sobre isso.

Com a vitória do neoliberalismo da senhora Tatcher (Margaret Tatcher, ex-primeira-ministra da Inglaterra) e do senhor Reagan (ex-presidente dos Estados Unidos), os países desenvolvidos passaram a pressionar a FAO para que ela parasse de fazer isso e ela cedeu a essas pressões. De maneira que é auspicioso que ela volte a tratar do assunto.

ABr: Foi por uma motivação política, então, a ausência dos debates nos últimos 26 anos? Por que a Reforma Agrária incomodava tanto na sua análise?
Plínio: Foi uma motivação política. Incomodava porque a reforma agrária afeta fundamentalmente o poder político das classes dominantes. E as classes dominantes é que fazem os governos e os governos é que comandam a FAO.

Essa volta é um reconhecimento, por parte dos governos, do fracasso que foi a tentativa de fazer um modelo agrícola baseado no agronegócio. E a necessidade de voltar a um modelo agrícola baseado no campesinato, no homem que trabalha a terra.

ABr: O senhor acha então que o modelo agrícola tem que ser exclusivamente voltado ao camponês?
Plínio: O modelo agrícola tem que ser modificado, é urgente modificá-lo. Porque o modelo agrícola que vige no mundo hoje é um modelo incompatível com a ecologia. É um modelo que polui as águas, que destrói a fertilidade do solo, que quebra a fauna. De modo que é fundamental mudá-lo, e a mudança desse modelo não se fará sem uma reforma agrária.

ABr: Como o senhor acredita que isso deve ocorrer? No caso brasileiro, por exemplo, onde já existe um agronegócio predominante, seria simplesmente excluí-lo, ou fazer um equilíbrio entre os dois?
Plínio: Nós propusemos, ao governo do presidente Lula, uma reforma agrária que prepararia o caminho para uma mudança. Não se pode mudar o modelo agrário do dia para noite. Porque a agricultura é vital para o funcionamento da sociedade. Mas se nós criássemos um verdadeiro processo de reforma agrária, criaríamos as bases econômicas, sociais e políticas para um outro modelo.

ABr:Qual é a crítica do modelo agrário que existe no Brasil hoje? Esse modelo vigente do agronegócio?
Plínio: É um modelo que produz muito, que exporta muito, que permite a renovação tecnológica com muita rapidez. Então, tem seus aspectos positivos. Mas tem seu lado negativo. Ele concentra renda, deteriora profundamente a terra e torna a agricultura brasileira dependente do exterior, na medida em que introduz tecnologias que não são produzidas aqui.

Nós vamos ter que enfrentar esse problema daqui a alguns anos, da deterioração dos recursos naturais brasileiros. Este avanço da soja na Amazônia, por exemplo, é um crime ecológico. Então, nós propusemos ao governo Lula uma reforma agrária. Infelizmente, o governo preferiu fazer um programa de assentamentos.

ABr: Então, o senhor diferencia. Para o senhor, o que o governo está fazendo hoje com o nome de reforma agrária é só um programa de assentamento?
Plínio: Exatamente. Ele não é um programa de reforma agrária porque não está afetando a estrutura de poder econômico, político e social do campo brasileiro. A reforma agrária é um processo de transformação do poder que vige no campo. No campo, você tem um poder, que comanda a vida das pessoas. E ele se baseia na concentração da propriedade da terra. A concentração da propriedade leva a um tipo de dominação sobre a população do campo. E esta dominação é que é a causa da pobreza, é a causa da miséria e, digamos, caracteriza o meio rural brasileiro.

ABr: Qual seria a reforma agrária ideal então?
Plínio: É aquela que afeta, que cria um mecanismo de desequilíbrio no equilíbrio perverso que existe hoje, de tal maneira que o campesinato possa ganhar força econômica, social e política para comandar a economia agrária, para impor um modelo camponês de agricultura.

ABr:O senhor acha que isso é possível no Brasil?
Plínio: Eu acho que é, porque é uma luta que não terminou. O Plano de Reforma Agrária, que nós apresentamos ao governo Lula, a pedido dele, não foi realizado aparentemente por falta de recursos. Mas na verdade, por falta de vontade política, de enfrentar o agronegócio e o latifúndio.

ABr:Por que se justificaria a reforma agrária hoje?
Plínio: Acho que o problema todo foi que reduziu muito a meta, nós tínhamos estipulado uma meta de 1 milhão de famílias em 4 anos. Isso afetaria a distribuição da terra de uma maneira eficaz e efetiva. Foi reduzido pela metade e com isso não se altera o equilíbrio perverso que existe no campo. De modo que virou um programa de assentamentos.

ABr:E o assunto voltou à baila num evento internacional por que?
Plínio: Por isso, porque a situação no campo é insustentável, porque existem rebeliões indígenas na América Latina inteira. Ocorrem rebeliões camponesas em quase todos os países e há uma crescente deterioração da natureza, dos rios. Então, precisa refazer o sistema da agricultura no mundo inteiro. Por isso, a FAO está fazendo voltando com o tema a um evento internacional.