Sociólogo português destaca presença de movimentos sociais norte-americanos como ponto alto do Fórum

04/02/2006 - 16h52

André Deak e Daniel Merli
Repórteres da Agência Brasil

Caracas (Venezuela) – Doutor em sociologia do direito pela Universidade Yale e professor titular da Universidade de Coimbra, o português Boaventura de Souza Santos é um dos mais conhecidos intelectuais da área de ciência sociais. Muito próximo dos processos do Fórum Social Mundial como membro do Conselho Internacional, Boaventura faz uma análise à Agência Brasil sobre o 6º FSM que aconteceu na capital venezuelana.

Agência Brasil: Que conclusões já podem ser feitas do Fórum Social Mundial de Caracas?

Boaventura de Souza Santos: Temos que analisar em fórum no contexto policêntrico. Este ano temos três fóruns (Venezuela, Mali e Paquistão), e os fóruns refletem sempre o contexto social, político e econômico da região onde acontecem. Bamako, em Mali, foi muito diferente de Caracas. Discutiu-se segurança alimentar dos campesinos, porque essa é uma luta importante lá. E a luta das mulheres, não só contra a violência doméstica, mas também contra a destruição dos mercados locais, nos quais elas estão envolvidas. Em Bamako houve cerca de 25 mil pessoas, um êxito. É possível prever que o fórum de Naioróbi, no Quênia, em 2007, também será um êxito. A África mostra que, apesar de suas dificuldades, pode organizar um evento desse porte.

Aqui é um contexto diferente. Tivemos uma presença latina grande. O primeiro êxito que devemos sublinhar é a presença dos movimentos sociais norte-americanos. Até agora não pudemos organizar o Fórum Social nos Estados Unidos, eles nunca quiseram participar de um modo intenso dessas atividades continentais. Mas aqui eles estiveram em peso, e isso é algo novo, é possível perceber que existe uma articulação começando. Além disso, a Assembléia dos Movimentos Sociais e as articulações sindicais também foram importantes. Esses são os êxitos mais interessantes desse fórum.

ABr:Houve algum outro destaque?

Boaventura: A centralidade da luta antiimperialista. A América Latina é o elo débil do imperialismo norte-americano. Nunca como hoje os Estados Unidos tiveram tanta dificuldade de relacionamento com países da América Latina, como a Argentina, Brasil, Venezuela. São situações diferentes, mas em todos há problema de relacionamento político e econômico.

Algo está mudando e, pela primeira vez, temos uma mudança democrática de esquerda na região, que teve que ser um tema central do Fórum. Porque existem diferentes esquerdas, diferentes regimes políticos, mas todos estão interessados em uma integração cultural e econômica alternativa a que estava proposta pelos EUA, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A Alca deve estar enterrada, é muito possível que não vá ressuscitar. O que existe, como Chávez diz, são "alquinhas" por aí, com os TLC (Tratados de Livre Comércio, bilaterais).

Essa idéia de uma frente antiimperialista na América Latina é outro aspecto importante desse fórum. Esses governos de esquerda no poder criam um debate interno dentro do fórum, sobre qual é a relação dos movimentos sociais com os governos.

ABr:Como deverá ser essa relação?

Boaventura: Defendo que os movimentos não devem desarmar-se quando existe um governo amigo. A exemplo do Brasil, se não existe uma pressão de baixo, as pressões de cima são fortes o bastante para que o governo não cumpra sua agenda social. Mas também surgem problemas quando movimentos sociais que estão lutando há 20 anos por uma agenda global chegam a um país onde o presidente defende a mesma agenda. Aí se cria um problema de protagonismo, quem vai liderar essas agendas, como será o relacionamento.

[O presidente venezuelano Hugo] Chávez teve uma atitude correta com o fórum. Muita gente se assustou com o primeiro discurso que ele fez, porque parecia que tomava posição em um debate interno do fórum. Um debate antigo, que agora está mais forte, sobre se o fórum segue como um espaço aberto ou se vai concretizar ações políticas, com agenda mais clara e uma luta mais clara de mudanças.

Chávez, aparentemente, decidiu que essa segunda opção é a melhor. Isso, claro, criou algum problema, porque há os que não querem isso, que pensam que assim o fórum irá acabar. Mas quando Chávez teve seu encontro com a Assembléia dos Movimentos Sociais, fez um discurso diferente, falando de autonomia diversas vezes, da agenda internacional, que não é a sua mas dos movimentos, então parece que houve um aprendizado.

ABr:Que críticas podem ser feitas?

Boaventura: Nos dois fóruns, Caracas e Bamako, tivemos problemas de centralidade. O Fórum estava disperso por lugares diferentes, com dificuldade de deslocamento. Isso está criando dificuldades, porque as pessoas querem estar onde se possa reunir duas, três, cinco mil pessoas, e depois ir a outra atividade. E para ir a essa outra atividade, leva-se horas. Então as pessoas preferiram participar dos eventos de suas próprias organizações, sem poder se surpreender com outras atividades.

Essa é a alma do fórum: você vem, vai discutir o que já conhece, mas vai conhecer lutas novas. Isso ficou um pouco prejudicado por esta organização. Parece, também, que os venezuelanos não fizeram a promoção interna do fórum como os indianos, em 2004. Os indianos percorreram durante um ano antes do fórum em Mumbai diferentes províncias, para promover o evento, criar uma mobilização. Aqui, por condições de organização – que não foram políticas, claro – essa promoção não foi feita.

Apesar da alta inscrição de venezuelanos, ficou a impressão que a participação deles foi minoritária, mesmo na marcha de abertura. Como a situação está polarizada, as pessoas estão concentradas nesse processo interno do país e não lhes sobra muita energia para entrar em outras lutas internacionais, apesar de seu presidente ter uma postura internacionalista. Não houve tanta mobilização interna quanto se poderia esperar.