Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
Porto Príncipe - "Qualquer nacionalidade que vier aqui e não nos arrumar empregos não estará fazendo nada pelo Haiti", ele diz em espanhol claro. Olhar fixo, magreza de asceta. Pudera. Conta ter apenas comido um pão e tomado um café desde o dia anterior. Francisco Tomás, 54, diz ser jornalista, viveu anos na vizinha República Dominicana. Ao seu lado, um técnico em eletrônica, mais adiante, um técnico agrícola. Todos desempregados, alguns há anos. Falam apenas o creole, uma derivação do francês dos colonizadores, difícil aos ouvidos estrangeiros.
Tomás se torna seu porta-voz: "O problema do Haiti é a miséria. Não há trabalho, só há fome. Quando uma nação estrangeira dá alguma ajuda financeira ou qualquer outra coisa, a classe humilde nunca vê nada. Fica tudo com um grupinho que está próximo do governo, se é que você me entende".
São duas horas da tarde no Haiti. A temperatura chega perto dos 40 graus Celsius e os homens se escondem sob a sombra de um flamboyant. Pelas ruas repletas de Porto Príncipe, milhares perambulam em busca de vender alguma coisa, como se ansiosos por movimentar a economia do país. Oferecem sua força de trabalho ou qualquer coisa que possam obter. De frutas a colchões, tudo é negociado no meio da rua.
A praça dos desempregados fica logo em frente do Palácio de Governo, ocupado pelo presidente interino Boniface Alexandre desde o início de março, poucos dias depois de Jean-Bertrand Aristide ter abandonado o cargo – ou de ter sido deposto com o apoio de militares americanos, como alegam seus partidários e ele próprio, hoje exilado na África do Sul.
Estabilização
Uma missão militar internacional ocupa o país desde o início de junho com a finalidade de garantir a segurança e a ordem. É a Minustah, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, que tem a inédita coordenação do Brasil. A queda do antigo governo foi a culminância de uma escalada de violência iniciada com a contestação do resultado das eleições legislativas de 2000. O partido de Aristide, o Lavalas, era acusado de promover fraudes. O bate-boca se converteu em conflitos armados e, no início de 2004, cidades do interior do país chegaram a ser tomadas por tropas rebeldes. Não faz mais que treze anos, em setembro de 1991, o mesmo Aristide já havia sido tirado do poder por militares.
"Instabilidade política crônica", diagnostica a transparência exibida pela coordenação militar brasileira ao ministro da Defesa, José Viegas, que visitou as tropas de paz em Porto Príncipe esta semana. "Crise econômica", completa o texto. "A coisa fundamental para garantir a estabilidade é o combate à miséria", afirmou a Viegas em encontro na quarta-feira o primeiro-ministro do governo provisório, Gerard Latortue.
Na reunião, Latortue fez diversas sugestões para a possível cooperação econômica entre Brasil e Haiti. "Idéias criativas e factíveis", avaliou Viegas, destacando a possibilidade de transferência de conhecimento técnico em áreas como a montagem de agroindústrias familiares para beneficiamento de frutas e farinha de mandioca, além da concessão de bolsas de estudo na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
"O Brasil pode ter um papel fundamental na reconstrução do país. E sem precisar tirar um centavo do bolso", sugere o padre Pierre Toussaint Roy. Haitiano, um dos coordenadores da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento, ele reside no Brasil desde o início dos anos 90. Abandonou o país para não ser morto pelos militares que depuseram Aristide pela primeira vez, em 1991. Cerca de cinco mil militantes ligados a movimentos populares que apoiavam o presidente afastado foram executados nesse período. Roy acompanhou o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, em sua visita ao país esta semana, com o objetivo de ouvir a sociedade civil local sobre o impacto da presença das tropas brasileiras.
A idéia do padre é a de utilizar o prestígio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no exterior em relação ao tema do combate à fome e à miséria para convencer grandes doadores internacionais a ajudarem o país. O embaixador brasileiro no Haiti, Armando Cardoso, acredita que algo semelhante deve se dar numa reunião prevista para acontecer em Washington, ainda este mês. Organizada, segundo ele, pelo Banco Mundial, será um encontro de possíveis doadores de recursos para a reconstrução do país.
O desafio é monumental. O Haiti é o mais pobre país das Américas e de todo o hemisfério ocidental. Dados do Banco Mundial referentes ao ano de 2002 dão idéia do contraste com Cuba, país vizinho, e com o Brasil. O Haiti tem quase 50% de analfabetos (Cuba, menos de 3%, o Brasil, cerca de 15%). A expectativa de vida média é de 52 anos - em Cuba, 76,8, no Brasil, 68,6 anos. A cada 1000 crianças nascidas, 123 morrem antes de completar 5 anos de idade - são 9 em Cuba, 37 no Brasil. A taxa de infecção por HIV chega a 6% - por aqui e na ilha governada por Fidel Castro, são cerca de 0,5% da população os infectados.
Nos últimos três anos, a economia do Haiti decresceu a uma taxa próxima de 1% ao ano. A soma de tudo o que é produzido no país anualmente é hoje de cerca de US$ 3,6 bilhões. As taxas de desemprego e de pobreza são de mais de 80%. Desde a acusação de fraudes nas eleições em 2000, segundo dados do governo americanos, Estados Unidos e União Européia suspenderam empréstimos e ajudas financeiras ao país da ordem de US$ 500 milhões, piorando ainda mais a situação do governo local.
Montanhas de lixo pelas ruas, esgoto a céu aberto por toda a cidade. Epidemias, violência, fome. Procuro soldados brasileiros que tenham sido criados em áreas pobres. A miséria é parecida? Um deles, habitante da Baixada Fluminense, desabafa: "Nunca vi nada igual".