Isabela Vieira
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro - Soterrados por escombros, registros e objetos dos antigos presídios de Ilha Grande começam a ser revelados no Museu do Cárcere, na Vila Dois Rios. Hábitos alimentares e costumes constituem um dos pontos mais importantes da mostra, inaugurada na última semana, no desativado Instituto Penal Cândido Mendes, implodido em 1994. A mostra traz depoimentos, imagens, utensílios e até documentos resgatados por moradores e historiadores.
Pequeno pedaço de pão acompanhado de um suco de capim-santo com moscas mortas foi servido no café da manhã a ninguém menos que o escritor Graciliano Ramos. Em 1936, ele passou 18 dias encarcerado por crime político. Seus relatos, revelados no livro Memórias do Cárcere (1953), dimensionam a agonia à qual os presos eram submetidos.
“A potassa [substância química] arruinava intestinos. Arriscara-me a ingerir uma colher de feijão e apavorava-me”. “[...] A miserável boia [comida] arrasara as entranhas [dos presos]”, conta Graciliano, no relato que ganhou um grande quadro. Havia, dentre os utensílios de cozinha utilizados pelos presos, em diferente épocas, imensas panelas de pão, retirada dos restos da implosão.
Criada para receber "vagabundos e marginais", a primeira instalação carcerária da ilha, no sul fluminense, ocorreu em 1894. À época, a comida chegava junto com os presos, de navio, poucas vezes por ano: as condições alimentares eram tão precárias que eram frequentes os casos de disenteria, de prisão de ventre e de problemas cardíacos.
Com a instalação de colônias agrícolas na década de 1930, os presos incluíram no cardápio frutas e pescado. Porém, a comida ficou pouca a partir da chegada de presos políticos, nos anos 1960: eles passaram conviver com presos comuns. Houve transformação da unidade, que permitia ao preso sair para produzir, em presídio de segurança máxima, explica o curador da mostra e diretor do Museu do Cárcere, que é vinculado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o historiador Gelsom Rozentino de Almeida.
“À medida que não se produzia nada, plantações e criações foram deixadas de lado, o preso não tinha mais a obrigação de trabalhar e não podia mais sair por conta da questão da segurança, voltando a depender da compra de alimentos”, informou.
Contrariando os documentos históricos e até fotos ilustrando a precariedade da cozinha do presídio, há quem diga que a comida naquela época “não era tão ruim”. O único ex-detento e morador da Vila Dois Rios, onde ficava a penitenciaria, Julio de Almeida, de 81 anos, que chegou a trabalhar na cozinha e serviu diretores, diz que tudo dependia do “fazedor”.
“O pessoal tem um pensamento que a comida era ruim e mal feita. Só que a comida era especial, tinha arroz, feijão carne, peixe, doce, tudo direitinho como manda o figurino, agora, o fazedor tinha que saber fazer”, contou. Segundo ele, a cozinha, apesar da fama de “caldeirão do diabo”, como o presídio também ficou conhecido, era “bem organizada, limpinha e direitinha”.
O policial militar aposentado Getulio Cantuária, que chegou ao posto de chefe da segurança em uma das últimas administrações, concorda. Ele lembra que a comida do instituto penal era também servida aos trabalhadores e suas famílias, que moravam na vila. Principalmente o pão.
“Quando eu cheguei, em 1975, a comida do preso era uma das melhores, feita aqui com muito carinho. O pão era excelente. Dava para todo mundo que morava aqui, inclusive minha família, e chegava a ser vendido lá embaixo [outras vilas da ilha]”, frisou.
Sem contestar os sobreviventes, o pesquisador Rozentino diz que antes da implosão, o presídio e, consequentemente, a cozinha, estavam deteriorados. “Até acho que a comida era boa entre 1940 e 1960. Depois, tenho minhas duvidas em função da precariedade da aquisição de alimentos, da deterioração da higiene e das instalações físicas do instituto, que datam de 1943”, afirmou.
A exposição Comida e Cárcere abre de terça a domingo, das 10h às 16h,e tem a peculiaridade de aceitar visitantes em trajes de banho, de passagem pela praia do povoado. O local pode ser acessado de barco ou por meio de uma caminhada de 11 quilômetros do centro de Ilha Grande.
Edição: José Romildo