Jurista critica "consciência conservadora" que coloca propriedade acima da dignidade

15/01/2010 - 9h47

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - A terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos(PNDH 3) fez reaparecer fantasmas que há décadasatormentam a história política brasileira.Aprincipal crítica ao programa, escrito após discussão pública dedois anos, é que ele ameaça a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28de agosto de 1979) e permite que pessoas que atuaram na “repressãopolítica” da ditadura militar (1964-1985) sejam processadas,julgadas e condenadas por seus crimes.Setoresmilitares criticaram o programa afirmando que o documento poderia levar o país a um clima derevanchismo. O principal foco das discussões recaía sobre a criação da Comissão da Verdade cujo intuito é apurar crimesque teriam ocorrido durante o período militar. Para pôr fim à polêmica, o governo decidiu não usar a expressão “repressão política” na parte que trata da apuraçãode casos de violação de direitos no contexto do regime militar. Assim, o texto dodecreto abre a possibilidade de que sejam investigadas violações de direitos humanos praticadas tanto por militares quanto por outros agentes do período. O textodo programa recebeu ainda críticas da Igreja Católica, por causados trechos relativos ao aborto; dos meios de comunicação, queafirmam que o documento favorece a censura; e do setor agrícola, queacredita em aumento da violência no campo com a criação de umacâmara de conciliação para mediar conflitos durante ocupações deterra.Ascríticas ao PNDH levaram o jurista Fábio Konder Comparato, 73 anos,a se manifestar publicamente contra quem critica o programa e contraqualquer revés na luta pelos direitos humanos no Brasil.Oadvogado e escritor também assina no Supremo Tribunal Federal (STF)uma arguição sobre a Lei da Anistia e tem expectativa que aprincipal Corte do país reveja este ano a impunidade sobre os abusosda época da ditadura. A seguir os principais trechos de suaentrevista à Agência Brasil.AgênciaBrasil: O governo resolveu o imbróglio em torno do PNDH 3 eeditou um novo decreto sobre a criação da chamada Comissão daVerdade no qual não consta a expressão “repressão política”,existente no texto original e criticada pelos setores militares. Oque o senhor achou dessa solução?FábioKonder Comparato: Foi um evidente recuo do presidente daRepública. De certa maneira, esse recuo era esperado. O presidenteLula jamais enfrentou a oposição do poder econômico e do podermilitar. Mas isso não deixa de ser surpreendente porque em toda ahistória republicana do Brasil ele é o presidente que contou com amaior aprovação popular. A impressão é que estamos onde sempreestivemos: uma espécie de cena política em que o povo, na melhordas hipóteses, é mero figurante. Isso é muito grave, nós nãopodemos simplesmente nos desolar diante de mais essa demonstraçãode que o povo não conta na política brasileira. A solução a longoprazo é a educação política do povo. A democracia é o únicoregime político que o povo precisa ser educado para agir. Nós temosuma democracia de fachada que mal esconde a oligarquia.ABr:Em um artigo publicado esta semana o senhor escreve que osmilitares, ao afirmar que o PNDH 3 quer revogar a Lei da Anistia,estão assumindo que aquela lei é contrária aos direitos humanos ousustenta graves violações. Por que os setores militares ainda têmdificuldade em lidar com esse passado?Comparato:Porque os militares no Brasil gozaram de absoluta impunidade no quediz respeito ao cometimento de atos criminosos contra o povo e contraa ordem política. Nunca ninguém pensou em pô-los no banco dosréus. O general [Ernesto] Geisel [presidente da República entre1974 e 1979] admitiu a tortura, mas um militar que hoje exerce asfunções de deputado federal [Jair Bolsonaro, PP-RJ] disse empúblico que o grande erro dos militares na época que elescomandavam ostensivamente o país foi torturar, deveriam ter matadoos opositores políticos! E o Ministério Público Federal ficou debraços cruzados... Isso é um escândalo! O Ministério PúblicoFederal está colaborando com a criminalidade por parte dosmilitares.ABr: O senhor assina a Arguiçãode Descumprimento de Preceito Fundamental da Ordem dos Advogados doBrasil (OAB) que questiona o Supremo Tribunal Federal quanto àinterpretação de que a Lei da Anistia mantém impune torturadores emandantes de crimes comuns, como sequestro, tortura, assassinato eestupro, praticados contra presos políticos durante a ditaduramilitar. O senhor tem expectativa que esse assunto se resolva esteano?Comparato:Espero que sim. Afinal de contas, a Procuradoria-Geral da Repúblicaestá em mora [em atraso no cumprimento de uma obrigação].Pela lei que rege esse processo de arguição de descumprimento depreceito fundamental, quando o Ministério Público não é o autorda arguição ele tem cinco dias para se manifestar. AProcuradoria-Geral da República foi intimada a se manifestar em 2 defevereiro de 2009. Daqui a uns dias completará um ano que aProcuradoria se debruçou sobre os autos e até agora não produziunenhum parecer.ABr: Osenhor vê algum motivo para isso?Comparato:Houve claro descumprimento da lei e o Ministério Público comoqualquer órgão público no Estado de direito tem que obedecer àlei e à Constituição. Não existem donos da lei.ABr: AConfederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)divulgou nota afirmando que, apesar do novo decreto presidencialsobre o PNDH 3 que institui o grupo de trabalho para criar o projetode lei sobre a Comissão da Verdade, “foram mantidas as ameaças àsinstituições democráticas, ao estado de direito e à liberdade deexpressão”. Qual a razão da queixa do setor rural?Comparato:Os dois programas de direitos humanos aprovados durante o governoFernando Henrique Cardoso [assinados em 1996 e 2002,respectivamente] foram muito mais incisivos do que este programano governo Lula. Não me parece que os proprietários de terra, oumelhor, perdão, os agricultores - como quer o ministro ReinholdStephanes [ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento]- tenham rasgado e queimado a roupa e posto a cinza na cabeçadiante desse cerceamento de sua liberdade. Tudo isso é ridículo,tudo isso é falso e tudo isso mostra que não vivemos em um Estadorepublicano, democrático e de direito. Qual a única ambição doPrograma Nacional de Direitos Humanos do presidente Lula? Aatualização dos índices de produtividade. Por que? Porque aConstituição proíbe a desapropriação para fins de reformaagrária das terras produtivas. Como é que se afere aprodutividade? Evidentemente por índices técnicos. Ora, os índicesque estão em vigor datam de 1975, há mais de três décadas.ABr:Período que houve uma revolução na produtividade do campo...Comparato:O que o programa de direitos humanos do governo Lula está pedindo éabsolutamente razoável: o cumprimento da Constituição. Os doisprogramas do governo Fernando Henrique eram a esse respeito muitomais sérios. Seguindo, aliás, uma proposta que eu fiz sendo membrodo Conselho Nacional de Defesa de Direitos da Pessoa Humana, osprogramas exigiam que se substituísse a norma do Código de ProcessoCivil segundo a qual as ações de manutenção e reintegração deposse, a expedição do mandato, podem ser feitam sem ouvir o réu.Está em causa a questão da função social da propriedade. Não épossível, em face da Constituição, dizer que a função social dapropriedade é secundária. Os maiores crimes para a consciênciaconservadora brasileira não são contra a vida e a integridadepessoal, mas contra a propriedade. A propriedade está acima dadignidade da pessoa humana.ABr:Vários veículos de comunicação disseram e repetiram que oPNDH 3 revoga a Lei da Anistia. Por que houve uma reação tãocontundente da mídia contra o programa?Comparato: A democracia exige aeducação política do povo. Numa sociedade de massa essa educaçãose faz pelos meios de comunicação de massa. Eles ocupam um espaçopúblico (rádio e televisão). O público significa espaço do povonão é do Estado nem de particulares. Nós conseguimos essa proezano Brasil: esse espaço público foi apropriado por empresários.Eles são donos da televisão, donos do rádio e, por conseguinte, doespaço de comunicação pública. A Constituição exige, porexemplo, que toda a concessão pública seja precedida de licitação.Eu gostaria que você me lembrasse qual foi o caso de licitação derádio e televisão aqui no Brasil. Politicamente, a grande arma quetem o empresariado nacional é a posse praticamente exclusiva desseespaço com o povo e do povo entre si. Então, não pode havereducação política. Toda vez que se fala em regulamentar o artigo220 da Constituição [que no capítulo 5 trata da ComunicaçãoSocial] gritam que estão sendo massacrados pelo Estado e falamde censura. Esse é o principal problema da democracia hoje noBrasil. O país é o único do mundo onde não há lei de imprensa.ABr: Osenhor avalia que o momento pré-eleitoral também reverbera nasdiscussões sobre o PNDH?Comparato:Provavelmente. Eu não vejo outra razão. Os pontos polêmicos doprograma já constavam nas edições anteriores do PNDH e eramtratados de maneira mais incisiva e abrangente. Eu não me lembro quetivesse havido tanta celeuma, não houve nenhuma aliás, quando dapublicação dos dois programas do governo Fernando Henrique. Isso estácheirando à campanha eleitoral antecipada.ABr:Essa antecipação explicaria o recuo do governo?Comparato:É bem provável. Isso eu não posso suportar. Francamente, euacho que presidente da República não pode negociar quando se tratada dignidade humana. Acho isso gravíssimo e mesmo sob o aspectoeleitoral não é ele o candidato. Ele não pode pretender, parafazer seu sucessor, negociar com questões que são inegociáveis.Isso é contrário ao espírito da Constituição e às normas maiselementares de ética política.