Spensy Pimentel
Repórter da Agência Brasil
São Paulo - "Além do direito à alimentação, há o direito a produzir a própria alimentação, que deve ser reconhecido pelas Nações Unidas", afirmou hoje o ativista francês José Bové, representante da entidade internacional Via Campesina no Fórum da Sociedade Civil, evento paralelo à Unctad XI (11a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento) que acontece em São Paulo de hoje até o dia 17. Terra, água, sementes e crédito seriam direitos dos agricultores, segundo a proposta.
O agricultor e militante Bové defendeu o conceito de "soberania alimentar" como base para a reestruturação do comércio internacional de produtos agrícolas. "O preço de mercado de diversos produtos hoje é baseado nos excedentes da safra dos Estados Unidos e da União Européia", afirmou. Segundo ele, a liberalização do comércio de produtos agrícolas beneficia apenas algumas empresas multinacionais, que dominam esse mercado internacional, numa "lógica de dumping".
Bové ficou famoso em 1999, quando liderou a invasão de uma loja da cadeia de lanchonetes McDonald’s, num protesto de agricultores franceses contra a liberalização agrícola. Depois desse episódio, ele foi preso diversas vezes por atos políticos envolvendo o ataque a propriedades de grandes multinacionais. Em 2002, o ativista foi intimado a se retirar do Brasil, depois de participar, junto de integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) da destruição de uma lavoura em Não-me-Toque (RS), pertencente à empresa Monsanto, produtora de uma variedade de soja geneticamente modificada.
Para Bové, a Unctad poderia tomar a iniciativa de estabelecer novas regras no comércio agrícola. A abolição de subsídios agrícolas a produtos exportados é um exemplo das mudanças sugeridas pela Via Campesina. A proposta significaria ainda "uma planificação do mercado internacional".
Segundo Bové, dados da União Européia mostram que 80% dos subsídios pagos pelos governos europeus a agricultores beneficiam apenas 20% das propriedades agrícolas, e, em decorrência desse desvio, 200 mil propriedades rurais desaparecem a cada ano no continente europeu. "Só se beneficiam multinacionais", afirmou o ativista.
Em reunião à tarde com os participantes do Fórum da Sociedade Civil, o secretário-geral da Unctad, Rubens Ricupero, também questionou a política de subsídios aplicada pela Europa. "Quem estará sendo beneficiado?", perguntou ele, lembrando recentes casos de suicídios de agricultores franceses que se viram em dificuldades financeiras. Para Ricupero, fatos como esse demonstram a inconsistência do discurso oficial europeu em defesa da produção local no debate sobre a liberalização de seu mercado agrícola.
Representante do Brasil no G-77, o embaixador Clodoaldo Huguiney Filho disse hoje que as posições do país nos debates internacionais pela liberalização do comércio agrícola não se chocam com a idéia de garantir a soberania alimentar e o modelo de agricultura tradicional. "A agenda é compatível. O G-20, que defende essa bandeira, reúne países como a Índia, que tem 650 milhões de agricultores nessas condições. Casos como o do Brasil demonstram que é possível a convivência de uma agricultura moderna com o modelo tradicional", disse ele hoje à imprensa.
O G-77 reúne a "bancada" dos países em desenvolvimento nos organismos internacionais. O grupo se reúne entre hoje e amanhã também em São Paulo. Ele foi lançado em 1964 com 77 países e hoje reúne 132.
O G-20 é mais restrito, reúne cerca de duas dezenas de países em desenvolvimento para defender a liberalização do comércio internacional de produtos agrícolas. O grupo foi formado em 2003, durante negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio.