Crescimento das cidades e da aviação tem gerado conflito "inevitável" no entorno dos aeroportos, diz pesquisador

25/11/2007 - 16h20

Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo - O crescimento das cidades e o conseqüente crescimento da aviação, em todo o mundo, têm gerado um conflito “inevitável”, segundo o engenheiro ambiental e sociólogo Luiz Henrique Werneck de Oliveira, que também trabalha com conflito sócio-ambiental em empreendimentos de infra-estrutura.Há cerca de quatro anos, conversando com um editor da Inglaterra, Oliveira teve a idéia de fazer um estudo sobre esse conflito, estudando aeroportos de todo o mundo em relação à comunidade onde está inserido. Ele analisou cerca de 10.700 acidentes aéreos ocorridos entre 1946 e 2005, priorizando aqueles em que alguma estrutura no solo foi atingida. A pesquisa foi feita a partir de bancos de dados de órgãos aeroportuários disponíveis em todo o mundo e não considerou acidentes provocados por helicópteros ou por aviões particulares com menos de oito lugares.“É um conflito que parece inevitável e é crescente. Em todo o mundo os aeroportos e a comunidade vêm entrando, cada vez mais, em situações de oposição e de discussão muito aguerrida”, afirmou o pesquisador, em entrevista à Agência Brasil.Desses 10.700 acidentes aéreos ocorridos em todo o mundo no período de quase 60 anos, em 381 os aviões atingiram estruturas urbanas. E segundo o pesquisador, a maioria destes acidentes ocorreu em países do Terceiro Mundo. “Por que no Terceiro Mundo isso pode ser mais complicado? Existe uma espécie de círculo vicioso entre uma renda mais baixa, uma falta de exercício de cidadania e uma desvalorização do espaço público”, afirma ele.Oliveira observou em seu estudo que o Aeroporto de Congonhas registra o maior número de acidentes aéreos contra estruturas urbanas.Confira trechos da entrevista:Agência Brasil: O estudo ainda não foi terminado, mas que resultados o senhor encontrou ou obteve até agora com a sua pesquisa? E o que chamou sua atenção nesses números?Luiz Henrique Werneck de Oliveira: Em primeiro lugar, tentei analisar os elementos desse conflito. De um lado temos a população urbana crescendo no mundo inteiro e fazendo com que as cidades cresçam. Nos próximos anos, pela primeira vez na história, o mundo vai ter mais gente morando em cidades do que no campo. São mais de 400 cidades com mais de um milhão de habitantes no mundo. Por outro lado, a aviação, que é uma indústria e um setor econômico que tem alguma coisa como cem anos de existência, se tornou realmente profissional e comercial nos últimos 60 anos, depois da Segunda Guerra Mundial, quando só cresceu. As cidades crescem de um lado, a aviação cresce de outro; a aviação faz com que os aeroportos tenham de crescer; as cidades crescem e buscam mais espaço físico; os aeroportos são geralmente construídos nas periferias, mas dotados de acesso ao usuário; e o acesso ao usuário faz com que a população procure morar no entorno daquele aeroporto, trabalhe ou não nele. Isso gera um conflito que é inevitável e esse conflito vem se intensificando nos últimos anos por dois fatores exógenos [externos]: o aumento da democracia nos países do mundo e o aumento da renda. O fato é que hoje há muito mais países no mundo desde a derrocada do império soviético e, ao mesmo tempo, há muito mais países chamados democráticos, com liberdade civil e pluralidade política, segundo a ONG Freedom House, que é a principal de análise nesse fator. A segurança é um dos fatores preponderantes desse conflito, embora não seja uma coisa estatisticamente tão relevante. Morre-se mais de acidente de carro, indo e vindo para o aeroporto, do que com o avião caindo em cima das pessoas.ABr: Os acidentes são mais comuns nesses aeroportos contornados por casas e prédios do que nos aeroportos mais distantes e afastados dos centros?Oliveira: Fiz um levantamento com registro de acidentes aéreos ocorridos entre 1946 e 2005. Naquela época ocorreram 10.700 acidentes - cujas descrições eu li em bancos de dados internacionais e até em agências de controle de segurança de tráfego aéreo dos Estados Unidos e de países europeus e asiáticos. O fato é que, destes 10.700 acidentes, em 380 casos consegui constatar, pela descrição, que há uma estrutura na terra que foi afetada pelo acidente. Ou seja, uma estrutura que pode ou não ter a ver com o aeroporto, mas que é uma estrutura em terra. Não se trata de um avião que bateu numa montanha ou caiu num mar, mas de quando ele afetou uma estrutura construída pelo homem. Desses 380 casos, em 210 houve vítimas fatais que não estavam no avião – estavam no solo. E desses 210 casos, em 163, as vítimas estavam fora do aeroporto. Excluídos os eventos de 11 de setembro de 2001 - que são três dos principais eventos em número de vítimas em solo no mundo, mas que são casos terroristas, muito específicos e que complicam muito a análise - fiz um ranking de distribuição do número de vítimas no solo versus o número de acidentes versus o número de países em que isso aconteceu ao longo desses 60 anos. E realmente há uma constatação muito clara de que, nos países do Terceiro Mundo, os acidentes tendem a fazer mais vítimas no solo. O que é um pouco surpreendente porque na prática voa-se muito mais nos países mais ricos e, no entanto, acontecem mais acidentes aeronáuticos nos países mais pobres. São poucas exceções. Nos 20 piores casos, só houve dois que aconteceram em países do G-7, por exemplo.ABr: Há uma explicação para isso? Por que ocorrem mais acidentes nos países do Terceiro Mundo?Oliveira: Isso é muito complexo e acaba pegando na minha veia sociológica. Não é uma relação causa-efeito direta e simples. Alguns países africanos tem uma quantidade enorme de companhias aéreas que são banidas de voar no espaço da União Européia, por exemplo, e não necessariamente são esses os aviões que mais caem. O que acontece é um círculo vicioso, que é mais complexo nos países do Terceiro Mundo do que nos países mais ricos, embora também ocorra neles. É o fato de que, quando as cidades crescem, elas meio que sufocam os aeroportos – as pessoas tendem a morar muito perto do aeroporto e era muito difícil para o gestor do aeroporto, pelo menos até a virada do século, perceber que onde está a cerca dele não é onde termina seus interesses. Ele tem de dialogar e participar das decisões da comunidade do entorno. Antigamente isso era uma distração gerencial e hoje é um imperativo do negócio. A autoridade aeroportuária ou a empresa dona de aeroportos que não prestar atenção a isso vai enfrentar dificuldades muito sérias e pode vir a ter aeroportos fechados no futuro.ABr: E por que o senhor afirma que isso seria mais complexo nesses países do Terceiro Mundo?Oliveira: Por que no Terceiro Mundo isso pode ser mais complicado? Existe uma espécie de círculo vicioso entre uma renda mais baixa, uma falta de exercício de cidadania e uma desvalorização do espaço público. Ao mesmo tempo ocorre um outro elemento, que é uma governança mais frágil. O poder público é menos apto e menos capaz de impedir que as pessoas venham a morar e exercer suas atividades econômicas de uma maneira totalmente descontrolada no entorno dos aeroportos. O que chama a atenção é que em 87 casos daqueles 381 acidentes, eu consegui indicações claras de a que distância do aeroporto aconteceu o acidente e as vítimas do solo se encontravam. E nesses 87 casos é gritante que, em 32 dos acidentes com vítimas fatais e 24 dos acidentes sem vítimas fatais, ou seja, em 56 dos 87 casos, os acidentes aconteceram em até dois quilômetros da cabeceira da pista. E isso é a esmagadora maioria do número de mortos também – são 581 mortes nesse raio contra 719 mortos no total. Não é um número tão alto: 719 pessoas, tirando os eventos do 11 de setembro. Mas isso é muito afetado por um único evento, por exemplo, que aconteceu em Kinshasa, na República Democrática do Congo, em 1996, quando um avião cargueiro, com excesso de peso, não conseguiu decolar, saiu da pista do aeroporto e entrou numa feira livre, matando 237 pessoas. Esse é o pior acidente não-terrorista em termos de mortos fora do avião. Nesse caso específico, não morreu ninguém a bordo do avião. Neste ano, na mesma cidade, mas em outro aeroporto, aconteceu o pior acidente de 2007 em termos de vítimas do solo: morreram 28 pessoas na queda de um Antonove russo.ABr: É possível dizer qual é o país mais seguro e em que país acontecem mais acidentes desse tipo?Oliveira: Não tenho o país mais seguro porque não fiz banco de dados com todos os países do mundo. Tenho alguns países em que o registro de acidentes nessa situação é zero. A Islândia, por exemplo, nunca teve um acidente fatal que tenha afetado qualquer estrutura no solo ou que tenha matado qualquer pessoa no solo. Mas também nunca aconteceu no Zimbábue, que é um país extremamente pobre. Mas não há o país mais seguro e o país mais perigoso. É preocupante, por exemplo, os dois aeroportos de Kinshasa, onde houve dois casos muito graves em cada um deles, fazendo muitas vítimas em solo. E uma coisa que chamou a atenção: quando houve o acidente com o avião da TAM em Congonhas, agora em julho de 2007, ordenei o banco de dados por aeroporto mais freqüente e isso foi uma constatação muito desagradável. O aeroporto mais freqüente, em termos de acidentes que afetam estruturas no solo é justamente o Aeroporto de Congonhas. Em segundo lugar vem o Aeroporto de La Aurora, na Guatemala. Congonhas teve oito eventos. O La Aurora teve sete. Nem todos esses eventos são fatais e nem todos causaram mortes tanto a bordo do avião quanto no solo. Qualquer morte no solo é uma morte demais assim como qualquer morte na aviação é uma morte demais. E a aviação é um setor que pensa dessa forma e que percebe, desde a sua origem, que a segurança é o fator chave da confiabilidade do uso dela, embora a aviação seja extremamente segura enquanto modal de transporte.