Spensy Pimentel
Enviado especial
Brasília – Software livre, internet livre, cultura livre. Há três anos, o Ministério da Cultura brasileiro mal esboçara uma estratégia para articular às políticas culturais do país o novo mundo das ferramentas digitais. Há uma semana, o ministro Gilberto Gil liderou oficialmente a comitiva brasileira na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, evento convocado pelas Nações Unidas e que reuniu representantes de mais de 170 países em Tunis, capital da Tunísia.
Enquanto outros países conferem leitura eminentemente econômica ou técnica aos debates sobre a relação entre as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), Gil encontra no conceito de "cultura livre" o sentido e a meta para a aplicação desses novos recursos, capazes de auxiliar na criação de "um mundo de paz, prosperidade e harmonia entre os povos", como afirmou em seu discurso oficial na reunião em Túnis. Em evento paralelo, a equipe de Gil realizava oficinas para divulgar seu trabalho de difusão das ferramentas de "cultura digital" dentro do programa Pontos de Cultura.
Na entrevista a seguir, concedida à Agência Brasil ainda em Túnis, perto do encerramento da cúpula, Gil comenta os resultados do evento e fala sobre os novos passos que o Brasil deve seguir na implementação da "cultura livre", prevendo novos embates internacionais acerca dos temas ligados à propriedade intelectual. Recentemente, o próprio ministro já assinou pelo Brasil a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, durante a 33ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) realizada em outubro, em Paris.
Na primeira parte da entrevista, Gil refuta os temores de que a criação do Fórum de Governança da Internet, principal conseqüência prática do evento em Túnis, abra caminho para maior ingerência de empresas ou governos autoritários sobre a Internet. "O fato de que agora estejam todos reunidos num fórum multilateral atenua a possibilidade de que existam interferências unilaterais", diz Gil.
Agência Brasil: Qual a avaliação que o sr. faz dos resultados obtidos na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação?
Gilberto Gil: Eu tenho a impressão de que a Declaração de Túnis estabelece determinados avanços que eram no fundo o desejo básico de uma grande parte dos pleiteantes, de todos que estabeleceram esse processo junto com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), as Nações Unidas, as grandes entidades internacionais, que consideraram essa questão da governança da internet. A cúpula trata de muitas outras questões, mas talvez essa tenha sido a mais interessante, aquela que nos trouxe a praticamente quase nós todos aqui.
A declaração sai um documento positivo quanto a isso, porque estabelece primeiro a compreensão ampla, internacional de que a internet deve ser considerada, protegida, fundamentada como instrumento aberto, amplo, estratégico, democrático para o futuro do desenvolvimento da humanidade e que, portanto, deve ser objeto do cuidado de todos. De todos os Estados, todos os governos, todos os conjuntos sociais representados por meio das suas corporações, do campo produtivo, das suas organizações comunitárias, no sentido da sociedade civil.
Tenho a impressão de que é um progresso importante o que sai daqui, com a criação do fórum, que é uma entidade que vai abrigar todo esse processo constante de discussão, que estava fora de um abrigo e agora tem um abrigo. Também é um avanço importante o fato de que todos os Estados passam a ser considerados em pé de igualdade, ou seja, todos têm o direito de estabelecer suas políticas relativas à questão da internet, contanto que elas estejam de acordo com os princípios superiores estabelecidos por toda a comunidade internacional.
ABr: Há quem tema que a atuação de governos autoritários ou grandes corporações nesse fórum, avaliando que as coisas deveriam permanecer como estão...
Gil: Com o fato de que estejam todos sob os olhares desse fórum, sob a vigilância do fórum, todos no mesmo plano, considerados igualmente, tenho a impressão de que se cria aí exatamente uma espécie de Conselho de Ética, que vai instruir, vigiar, subsidiar as ações dos Estados com a idéia do que é ou não aceitável. Esses contextos também vão emanar da própria vida natural das sociedades, que vão ter palavra.
Por exemplo, pornografia, pode ou não pode? Não vão ser os Estados que vão dizer isso, eles vão acabar representando um pouco o que as suas sociedades queiram. Um pouco como já é na internet, só que com mais capacidade de supervisão internacional, a partir não só dos estados representados pelos seus governos, mas representados pelas suas sociedades, pelas suas instâncias não governamentais, por todo o mundo.
Eu não acho que se deva temer uma situação como essa mais do que a situação que nós temos hoje. Hoje nós estamos sujeitos a que a China estabeleça certas restrições ao tráfego de informações na internet, que a Tunísia prenda as pessoas por não se sujeitarem a regras impostas pelo Estado. Hoje os Estados são como são, mais ou menos democráticos, e o grau de cada situação define também como eles agem em relação à internet.
O fato de que agora estejam todos reunidos num fórum multilateral atenua a possibilidade de que existam interferências unilaterais. Por isso, eu não acho que seja mais ou menos temerária a posição que nós estamos alcançando do que a que nós temos tido até agora.