Além de celebração, Kuarup é um acontecimento político

26/08/2005 - 22h52

Spensy Pimentel
Enviado especial

Alto Xingu – Além de homenagear os mortos ilustres do Xingu, o Kuarup também tem tradicionalmente o papel político de aproximar comunidades. Com o crescente contato com os brancos, a cerimônia agora também se torna espaço para contato com autoridades brasileiras.

Entre os convidados do Kuarup que terminou hoje na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, estiveram o presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Pereira Gomes, e o prefeito Edson Harold Wegner, de Gaúcha do Norte (MT) – um dos municípios vizinhos ao Parque Indígena do Xingu (a 70 quilômetros de Ipatse). O ministro Gilberto Gil, da Cultura, e o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, também haviam sido convidados para o evento.

"Kuarup é um evento ritual e político. E isso hoje inclui também relações políticas com a sociedade nacional", explica o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele trabalha há cinco anos com os Kuikuro num projeto de preservação da memória ritual tradicional.

Fausto diz que as cidades vizinhas ao Xingu têm uma dívida com os índios. "Algumas delas vivem em grande parte com os recursos que os índios levam até lá, e eles esperam um retorno na forma de educação, saúde e, fundamentalmente, com a preservação das nascentes do rio Xingu, que estão sendo destruídas", diz ele.

O antropólogo conta que a preservação das matas nas margens dos afluentes do Xingu, que estão todos fora do parque, é hoje uma das principais preocupações dos índios. Nos últimos anos, a expansão da soja nos municípios vizinhos, às vezes à custa das matas ciliares, tem favorecido o assoreamento dos rios. As mudanças nas águas, que estão se tornando mais turvas e arrastam lixo para dentro do parque, também fazem os índios desconfiar de poluição, principalmente por agrotóxicos.

Fausto lembra que a presença das autoridades das cidades vizinhas nas festas do Xingu não dá garantia para solução desses problemas. "Todas as relações têm dois lados. Não precisamos ser pessimistas, mas também não podemos ser ingênuos sobre todas as dificuldades que nós mesmos temos com os nossos políticos, que nem sempre nos representam bem", diz. "Bobagem achar que há oposição entre a preservação das terras indígenas e as atividades econômicas dos brancos. É apenas preciso haver alguma regulação pelo Estado, senão, não só o Xingu, mas a Amazônia toda vai ficar inabitável, não só para eles como também para nós."

O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961 e tem hoje 2.642.003 hectares. A parte sul do parque é conhecida como Alto Xingu e é habitada por 14 diferentes etnias, com línguas distintas, mas traços culturais comuns e um sistema ritual, simbólico e econômico que se mantém pelo menos desde o século XIX.

A conformação das aldeias, a alimentação, as cerimônias e festas (como o Kuarup e mais de uma dezena de outras) e a mitologia são alguns traços que constituem a identidade dos xinguanos. Na construção dessa "convivência pacífica", como explica Fausto, o Kuarup sempre teve papel importante. "É um momento de criação e consolidação da paz xinguana."