Brasília – A entrevista continua sendo uma das técnicas essenciais ao bom jornalismo. Na semana passada, ao analisar a cobertura da Agência Brasil sobre a polêmica em torno de alguns itens incluídos no projeto de lei 2126/2011, submetido pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em agosto de 2011 para “estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”, a Ouvidoria observou que muitas reportagens privilegiaram as posições extremas, defendidas por argumentos que intencionalmente distorcem os objetivos e as prováveis consequências da proposta. Neste caso, uma boa entrevista, com uma fonte imparcial, teria contribuído para preencher o vazio e facilitar o entendimento das diferenças, colocando o debate em termos mais pormenorizados e concretos, possibilitando assim ao leitor fazer uma avaliação crítica da questão.
‘Em março de 2012 uma comissão especial foi criada para dar um parecer sobre o projeto e oito audiências públicas foram realizadas, mas a medida não chegou a ser votada. No 10/9 deste ano, depois da revelação dos atos de espionagem cibernética cometidos pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos contra cidadãos e empresas brasileiros, inclusive, os e-mails da presidenta Dilma e os dados da Petrobras, o Poder Executivo pediu que a proposta tramitasse em regime de urgência. Em reação aos atos de espionagem, no 4/11 o relator do projeto, Alessandro Molon (PT-RJ), apresentou um substitutivo que obriga as empresas que atuam na internet no Brasil a obedecer a legislação brasileira na coleta e armazenamento de dados pessoais dos usuários, permitindo ao governo exigir que os dados estejam armazenados em servidores localizados em território brasileiro.
Nos últimos 12 meses a Agência Brasil publicou 54 matérias com referências ao assunto, 23 delas (43%) depois do pedido de urgência em setembro. Algumas trataram da questão do armazenamento dos dados no Brasil, que, ao ser acrescentado ao projeto, tornou-se um dos itens mais controvertidos. Entretanto, o item enfocado com mais frequência (em 20 matérias) e considerado pelo relator o ponto mais polêmico é a chamada “neutralidade” da rede, definida no Artigo 9º do projeto: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo” [1].
O que, então, significa exatamente a “neutralidade”? A polêmica sobre a questão é refletida na cobertura, que, ao reproduzir os argumentos dos dois lados sem uma exposição preliminar, dificulta a compreensão para quem não tenha conhecimento técnico de como é feito o controle do tráfico de dados na rede. O relator do projeto é citado em 11 das matérias. Em uma delas ele defende que: “Com esse projeto, estamos garantindo a liberdade de escolha do usuário e não [o poder de] o provedor de conexão, mediante acordos comerciais, escolher o que vai chegar rápido ou devagar ao usuário. ....Os provedores de conexão ... querem que só chegue rápido ao nosso computador sites de empresas que pagarem taxas especiais”. Segundo a reportagem: “Na prática, a intenção é impedir que provedores de internet priorizem o acesso de clientes que pagam pacotes mais caros de banda larga e favoreçam conteúdos de determinados sites em detrimento de outros” [2].
Para rebater esta condenação dos interesses comerciais dos provedores de conexão, os adversários da proposta apontam os impactos econômicos negativos que a neutralidade pode acarretar. Para o deputado Ricardo Izar (PSD-SP), o princípio da neutralidade afasta os investimentos: “Se alguém paga R$ 9,90 para ter só acesso a e-mails e outra pessoa paga R$ 200 para baixar filmes e fotos, ela tem que ter prioridade na hora do congestionamento. Se a gente impedir isso, como 90% [dos usuários] têm o barato e 10%, o caro, as operadoras de rede vão ter que aumentar o preço do barato. Ninguém vai querer investir para ter prejuízo” [3]. O diretor do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil), Alexander Castro, concorda com este raciocínio, apesar do sindicato estar supostamente alinhado com a neutralidade, segundo a reportagem: “Se o projeto não tiver pequenos ajustes … na possibilidade de oferta diferenciada de produtos, os programas de massificação do governo serão afetados, e o preço da internet deverá subir” [4].
Esta discussão, pelo menos para a Ouvidoria, não deixou clara a natureza das diferenças e das ligações entre a velocidade das conexões e a filtragem dos conteúdos. A filtragem que favorece certos sites é igual para todos que os acessem ou não é? Onde é que entra o perfil que o provedor tem das preferências do cliente? E, uma vez feita a conexão, o que afeta o acesso além da velocidade contratada?
Para uma explicação mais simples e direta de como a neutralidade deve funcionar, se o projeto for aprovado, o leitor teve que aguardar a publicação de uma matéria baseada numa entrevista com a pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (CTS-FGV), Marília Maciel, no 6/11/13. O centro, junto à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, foi responsável pela iniciativa do Marco Civil da Internet. De acordo com a pesquisadora: “Isso quer dizer que, se eu compro um pacote de 1 mega ou de cinco mega de internet, o uso que eu vou fazer desses meus mega de velocidade depende das minhas escolhas. Não é o operador que vai dizer o que eu posso acessar. Eu comprei tantos megas e posso acessar texto, vídeo ou fazer um curso de ensino a distância online”. Segundo a reportagem, “o usuário vai poder continuar a contratar pacotes de velocidades diferentes, mas, dentro daquela velocidade escolhida, ele poderá acessar qualquer tipo de aplicativo na internet” [5]. Como isto vai funcionar na prática é outra questão, pois a lentidão nas conexões já provocou medidas oficiais para garantir ao menos um percentual mínimo da velocidade contratada nos horários de pico. Quem tenha uma conexão com poucos megas sabe do tempo que leva para baixar determinados conteúdos, quando, aliás, for possível baixá-los.
Quanto ao cumprimento da legislação brasileira na coleta e armazenamento de dados pessoais dos usuários e o armazenamento dos dados em território brasileiro, a entrevista é esclarecedora também, porque contraria a impressão dada em outras matérias de que a medida vá ter um impacto direto no combate aos atos de espionagem praticados por agências estrangeiras que acessam os dados de pessoas físicas e jurídicas no Brasil. Segundo a reportagem, “a pesquisadora acredita que, embora o problema seja vendido como uma resposta ao monitoramento das comunicações, isso tem mais a ver com a questão de acesso aos dados em processo de percepção penal”. De acordo com ela, “as autoridades policiais brasileiras têm dificuldades de ter acesso aos dados dessas pessoas quando elas se encontram hospedadas em outra jurisdição” e “nesses casos é preciso solicitar uma cooperação judicial internacional que acaba retardando o processo”, a reportagem acrescenta.
O marco civil da internet não vai evitar que um grande volume do fluxo de dados na rede continue a passar pelos Estados Unidos e ser armazenado pelas empresas nos seus centros de dados (datacenters) lá. Como várias das matérias publicadas pela Agência Brasil demonstram, a proteção das comunicações brasileiras depende principalmente do desenvolvimento de sistemas de software no Brasil. De acordo com o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Castro, o armazenamento dos dados no Brasil “permitirá a proteção do usuário que se sentiu lesado com a violação desses dados ... independentemente da previsão da legislação de outro país, o prestador de serviço certamente poderá ser responsabilizado”. Ele admitiu, porém, segundo a reportagem, “que, nesses casos, a prova da violação é difícil, mas não impossível” [6]. Uma ressalva como esta, da mesma forma que uma resposta obtida numa entrevista com uma fonte imparcial, costuma transmitir ao leitor informações mais sólidas e confiáveis que aquelas fornecidas pelas partes interessadas.
Boa Leitura!
[1] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=912989&filename=PL+2126/2011
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-11-13/marco-civil-da-internet-relator-diz-que-deputados-vao-escolher-se-apoiam-usuarios-ou-provedores
[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-11-07/polemicas-e-divergencias-adiam-pela-terceira-vez-votacao-do-marco-civil-da-internet
[4] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-07/relator-diz-que-espinha-dorsal-do-marco-civil-da-internet-nao-sera-mudada
[5] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-11-06/reforco-da-privacidade-dos-usuarios-e-um-dos-pontos-mais-positivos-do-marco-civil-da-internet-diz-pes
[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-03/senadores-criticam-demora-da-camara-para-votar-marco-civil-da-internet