Marcos Chagas
Enviado especial da Agência Brasil
Iñapari (Peru) – A presença de 96 haitianos nesta cidade, onde tentam regularizar seus documentos para que possam trabalhar no Brasil, gera o mesmo tipo de reação tanto entre os que vivem no lado peruano quanto entre os que estão na vizinha Assis Brasil, no Acre. Moradores dos dois municípios afirmam que os haitianos se recusam a trabalhar, mas, ao mesmo tempo, reconhecem que, sem comida, água e energia, como estão vivendo há quase quatro meses na localidade de Iñapari, não dá para continuar.
A reportagem da Agência Brasil comprovou que é critica a situação dos haitianos em Inãpari. Ontem (17), segundo relato de imigrantes como Junior Saint-Jean, que já tem situação regularizada na fronteira, eles foram transferidos para dois barracões de madeira.
As mulheres, a maioria com problemas de infecção urinária, detectada por médicos do hospital de Assis Brasil, residem em barracão separado do dos homens. Elas são 26 e ocupam um só cômodo, no qual não há energia elétrica. Dormem em colchonetes doados pela comunidade, fazem suas necessidades fisiológicas no mato, em área próxima ao leito do Rio Acre. Quando recebem doações de água, usam para fazer a comida. Os alimentos são também doados.
Banho, só no rio ou com a água que sobra e fica depositada em uma caixa de 500 litros. O banheiro é tampado com uma espécie de rede e coberto com telhas de amianto. A água é distribuída por cinco canos que escorrem para uma vala a céu aberto.
“Vivemos como animais. O governo peruano não nos dá qualquer apoio desde que chegamos aqui”, disse Junior Saint-Jean. No barracão dos homens, a situação é parecida. São 70 ao todo, distribuídos em seis apartamentos, um deles separado para haitianos que estão com a saúde mais debilitada.
As cidades de Assis Brasil e Iñapari estão situadas em uma região da Amazônia onde a leishmaniose é endêmica, disse o clínico geral do hospital da cidade brasileira, Everton da Costa. Praticamente todos os homens têm o corpo coberto de pequenas feridas, como foi mostrado à reportagem pelo imigrante ilegal Ebetch Nerizier, 26 anos. “Os mosquitos picam a gente toda noite. Estamos cobertos de feridas e sem qualquer tratamento médico. Alguns, por estresse, pensam até em se matar”.
Perguntado por que não retornam ao Haiti, com tantos problemas que enfrentam para entrar em território brasileiro, Nerizier foi direto: “Nós não queremos trabalhar no Peru, porque não conseguiríamos entrar no Brasil. Queremos trabalhar no Brasil, ganhar um pouco mais de dinheiro para mandar para nossas famílias que ficaram no Haiti. Lá é pior, não tem nada.”
Eles contam que todos os seus documentos estão com a Polícia Federal. A postura do governo brasileiro, até o momento, é não permitir o ingresso de novos imigrantes. No primeiro semestre, o governo federal, em parceria com o governo do Acre, regularizou e conseguiu empregar mais de 2 mil haitianos.
No momento em que a reportagem da Agência Brasil estava no local, chegou o técnico do governo de Iberia, equivalente ao governo de um estado brasileiro, para instalar rede de água e luz. O eletricista Ochoa Lucas colocou lâmpadas em todos os cômodos e disse que puxaria a rede de água. “Toda vez que tem alguém de fora ele vem aqui, faz isso e depois desliga tudo”, disse o pedreiro haitiano Jean Rodeng Fleurisma.
Por telefone, o padre Rutemarque Crispim, pároco em Brasiléia (AC) e responsável pela Pastoral de Direitos Humanos de Assis Brasil, confirmou a história contada pelo haitiano. “Na semana passada, estive aí também e eles fizeram a mesma coisa. Logo que saí, desligaram a energia.”
O padre confirmou também as reclamações de moradores de Iñapari, segundo os quais os haitianos só querem receber doações, sem trabalhar. Segundo o padre Crispim, são oferecidos, em média, R$ 13 de diária, o que, na cidade, só dá para um dia de alimentação.
Lêni Lopes Cardoso, nascida em Iñapari e filha de brasileiros, disse que, na primeira leva de 240 haitianos, arrumou emprego para dois, mas não pagava em dinheiro. Como aluga quartos para se manter, Lêni trocava o trabalho de arrumação por habitação e comida.
“O problema é que eles não querem trabalhar, querem que se deem as coisas. Se trabalhassem fazendo alguma coisa, até haveria ajuda maior do povo daqui”, disse Lêni. Os dois haitianos que aceitaram trabalhar com ela tiveram a situação legalizada e puderam ingressar no Brasil. Segundo Lêni, o visto brasileiro seria apenas para facilitar a entrada na Guiana Francesa, este sim o país pretendido pelos haitianos.
Antonio José Lima, comerciante em Assis Brasil e membro da Pastoral de Direitos Humanos, confirma que a situação é cada vez mais crítica. A cada dois dias, Lima leva 500 litros de água potável aos haitianos. De acordo com Lima, a maioria deles acha que, se arrumar emprego no Peru, terá o visto brasileiro.
Outro comerciante de Assis Brasil que presta assistência humanitária aos haitianos, Júnior, confirma as dificuldades e pergunta: “O fato é que empresário visa ao lucro. Como é que vamos dar do nosso bolso? O que você vê aqui são doações”. Para ele, trabalhar seria oportuno para que os haitianos voltassem a ser vistos “com bons olhos” pela população de Assis Brasil e Iñapari.
Outro problema foi a postura do grupo durante a enchente do início do ano que alagou quase toda Iñapari e boa parte de Assis Brasil. Segundo Júnior Melo, enquanto a população peruana se uniu para limpar ruas, casas e salvar móveis e eletrodomésticos, os haitianos não esboçaram qualquer iniciativa de ajuda.
Procurado pela reportagem, o prefeito de Assis Brasil, Celso Cury, não respondeu às ligações.
Edição: Nádia Franco