Paulo Machado
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Uma nova economia surge no país, estabelecendo relações de trabalho
não-formais e não-assalariadas. É o setor de empreendimentos de economia solidária, que movimenta hoje mais de 24 mil empresas administradas pelos próprios trabalhadores. Para estimular o setor, há um ano, o governo federal criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária, que está mapeando todos os investimentos existentes na área para definir políticas públicas de gestão desses pequenos negócios.
A iniciativa, que já é sucesso em países como França, Espanha, Canadá e Índia, inspirou a realização de um fórum de debates, o 1º Encontro Nacional de Empreendimentos da Economia Solidária. O eventou reuniu, neste fim de semana, em Brasília, associações e cooperativas que representam seis mil empreendimentos solidários. Uma delas é a Organização Trocas Solidárias e Cooperativismo, que promove a Feira de Trocas Solidárias Mutirão do Quilombo da Serra em Teresópolis (RJ). O líder da organização, Ary Moraes, explicou, em entrevista à Agência Brasil (ABr), como é essa nova forma de economia e o que precisa ser feito para torná-la mais dinâmica.
ABr - Como funciona a questão da troca como moeda da solidariedade?
Ary Moraes - As moedas sociais ou as chamadas moedas comunitárias são um
instrumento da economia solidária, de geração de trabalho e renda. A partir do momento em que os trabalhadores desempregados e sem perspectiva na economia formal conseguem construir um processo de geração de trabalho e renda, de inclusão social, através de trocas, porque o valor de seu trabalho, o valor do seu serviço, o valor do seu saber, é utilizado nas trocas. No nosso caso, lá em Teresópolis, temos o Tupi, que é a nossa moeda social. Com ela, a gente acaba gerando trabalho e renda, porque as pessoas produzem para trocar com outras.
ABr - São pessoas que estavam fora do mercado de trabalho e voltaram a produzir, pessoas que encontraram uma nova forma de sobreviver?
Ary Moraes - Em parte, sim. Muitos estavam fora do mercado de trabalho, desempregados, e hoje trabalham na padaria comunitária, na oficina de ervas medicinais, na confecção. Todos são empreendimentos que nós mesmos construímos a partir da economia solidária. Tudo caseiro, familiar, e as pessoas levam seus produtos para trocar e adquirirem outros que satisfaçam suas necessidades básicas. Outra parte é de pessoas que já produziram um dia só para a economia formal e acabam levando também seus produtos para a Feira de Troca, que também é uma forma deles adquirirem produtos que precisam.
ABr - Essa nova maneira de sobreviver e de comercializar, por que ela é solidária?
Ary Moraes - Fundamentalmente, ela é solidária porque não está na lógica da
acumulação, da ganância, do enriquecimento pessoal. Ela está na lógica da solidariedade, do compartilhar. Uma nova forma de fazer economia, uma economia baseada em valores, no amor, numa economia amorosa, onde as pessoas sabem que o que é bom para outro é bom para ela. O que é bom pra ela, é bom para outro. E todos crescem juntos nessa caminhada.
ABr - Neste encontro, o primeiro que vocês estão realizando, quais são as reivindicações que a economia solidária traz para o governo federal?
Ary Moraes - Há uma contradição: determinados setores estratégicos da economia
brasileira estão na mão de grandes empresas privadas. Hoje, a gente faz a economia solidária através das cooperativas, das associações, da economia popular, mas grande parte de nossos recursos acaba sendo drenada por essas empresas que foram estrategicamente colocadas na economia, depois que o estado as entregou para a iniciativa privada. Por exemplo, hoje, quando a gente paga uma conta de luz, esse dinheiro não fica na sociedade, é acumulado individualmente por essas empresas. O mesmo ocorre quando pagamos a conta de telefone e com todos os serviços públicos - esses recursos não ficam na nossa economia. Então, a gente constrói a economia solidária, mas a riqueza gerada acaba sendo drenada para outros setores da economia, impedindo-nos de crescer. Esta é uma contradição que nós estamos lutando
para superar.
ABr - Vocês defendem a reestatização dessas empresas ou querem passá-las para o controle social?
Ary Moraes - Hoje já temos agências reguladoras que fariam o papel do governo, controlando essas empresas. Só que a lógica do capital é a acumulação. Então, ela é contraditória na medida em que tem que prestar serviços básicos à população. Nós entendemos que esses serviços estratégicos da economia, essas empresas prestadoras de serviços deveriam estar na mão do Estado. Um Estado competente, eficiente, para que possa oferecer um bom serviço para a sociedade. O lucro desses setores estratégicos deve ser social. Os setores médios da economia estão na mão das cooperativas - isso hoje é uma realidade. Agora, outros setores, que não são estratégicos, podem estar na mão da iniciativa privada. Eu creio que a gente quer mesmo é a reestatização desses setores estratégicos, e com Estado eficiente e competitivo, que possa oferecer um lucro social pra sociedade.
ABr - Você acha que essas empresas que estão acumulando lucro a partir da prestação de serviços, que esse lucro acumulado por elas é um dinheiro que é drenado e que falta para a economia solidária se desenvolver?. De que maneira esse custo onera a produção da economia
solidária?
Ary Moraes - É fundamental a gente rever, porque a força de nosso trabalho acaba sendo apropriada pelo capital. E a economia solidária, o que é? É a apropriação da força de trabalho pelo trabalhador, é o resultado do trabalho compartilhado pelo trabalhador. Então, a gente não vence essa contradição enquanto esses setores estratégicos da economia estiverem na mão de iniciativa privada.
ABr - No seu discurso, na abertura na conferência, você citou um exemplo do pedágio.
Ary Moraes - É, em Teresópolis, no Rio de Janeiro, interior do Rio de Janeiro,
colocaram um pedágio no processo de privatização das rodovias do antigo governo. É uma herança que a gente tem do antigo governo. Nós, agricultores, para vender nossa produção na cidade, temos que pagar pedágio na ida e na volta. O produtor rural está se desestimulando a produzir, porque grande parte da sua produção está indo para o pagamento de pedágio. É um absurdo, a gente vive uma situação de isolamento em relação a serviços básicos da cidade - correio, bancos, tudo isso aí, você tem que pagar pedágio. O governo tem que rever essa lei das
privatizações, esses contratos de concessão, muitos deles foram feitos de maneira fraudulenta no antigo governo.
ABr - E com relação ao crédito, o governo tem anunciado diversas linhas de crédito para micro e pequenos empresários, para pessoas físicas. E para a economia solidária, como tem sido o acesso ao crédito?
Ary Moraes - O Banco do Brasil e a Caixa Econômica têm mudado. A gente tem
sentido a mudança na postura da visão do crédito, da política de crédito dessas instituições, principalmente no microcrédito. Nós temos visto um melhor acesso, taxas de juros mais justas para o microcrédito, para o pequeno empreendedor, para o microempreendedor. Nós temos sentido uma mudança, mas muito ainda precisa ser feito. Isso tudo são avanços inequívocos que
o governo tem apresentado na área das finanças, mas algumas coisas ainda precisam ser feitas. O movimento social tem feito pressão, e o governo é sensível à pressão. A própria constituição da Secretaria Nacional de Economia Solidária é uma conquista do movimento popular, é uma conquista da sociedade civil organizada, mas a gente precisa avançar mais. É para isso que estamos aqui no Fórum Brasileiro de Economia Solidária e no 1º Encontro Nacional de Empreendimento de Economia Solidária.
ABr - E, na parte da legislação, quais seriam as reivindicações básicas da economia solidária?
Ary Moraes - Temos hoje uma contradição, que é a Lei 5.764 (Lei do Cooperativismo), que regulamenta o ato cooperativo. A atual Lei do Cooperativismo foi construída a partir de dois governos ditatoriais: o Estado Novo e a ditadura militar. Então, essa lei, que foi construída nesses dois períodos da história do Brasil, é contraditória e não consegue atender ao movimento social, à sociedade civil organizada. Então, hoje, é o movimento de economia solidária que agrega as cooperativas. Cooperativas de crédito, de produção, de consumidores não são atendidas por essa lei. Essa lei não consegue atender às demandas desse segmento. Por quê? Porque é um segmento da sociedade civil organizada que não existia na época em que a lei foi feita.
ABr - Em que aspecto a lei obstrui a economia solidária e impossibilita o seu acesso à formalização?
Ary Moraes - Na exigência de se ter 20 cooperados, por exemplo. Este é um impedimento grande. Hoje, o setor que dá um vigor tão grande, que gera tanto trabalho e renda na sociedade, não pode ter uma tributação dessa. Então, nós defendemos uma tributação
diferenciada. Não é subsídio. Queremos a classificação dos produtos da economia solidária entre essenciais, semi-essenciais e não-essenciais, cada um com um tributo adequado.
ABr - E a questão do selo de qualidade?
Ary Moraes - Estamos lutando para estabelecer um selo de certificação dos
produtos da economia solidária, porque aí, a gente pode começar a pensar na nossa cadeia produtiva solidária. Este selo é um documento certificando produtos de uma economia solidária participativa, que garanta a origem do produto, que é um produto que não tem exploração de
mão-de-obra, ambientalmente sustentável, que não causa dano ao meio ambiente, que o excedente do trabalho é reinvestido no próprio empreendimento ou é dividido dentro do empreendimento. Então, tudo isso dá uma garantia para o produtor e o consumidor da economia solidária.