Nádia Faggiani
Repórter da Agência Brasil
Brasília - A ocupação do Iraque pelas tropas americanas sem o aval da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida exatamente há um ano, leva às ruas, neste sábado, milhares de manifestantes em todo o mundo. A decisão de transformar esta data em Dia Mundial de Protesto foi homologada por milhares de organizações na plenária final do Fórum Social Mundial, realizado em Mombai, Índia, em janeiro deste ano.
Em entrevista à Agência Brasil, o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB), Amado Cervo, analisa a situação do Iraque e as conseqüências da invasão a Bagdá pelos Estados Unidos.
Para o cientista político, as chances concretas de o Brasil obter vantagens ou benefícios em uma reaproximação nas relações com o Iraque - após o repasse do governo aos iraquianos previsto para 30 de junho -, são limitadas e vão depender de os americanos manterem ou não a exclusão de outros países que não os apoiaram na invasão àquele país.
Agência Brasil – Quais as conseqüências da invasão do Iraque pelas tropas americanas ocorridas há um ano? Os atentados em Madri ocorridos no último dia 11 de março e que deixaram 200 pessoas mortas são repercussões da política americana de combate ao terrorismo?
Amado Cervo - A guerra contra o Iraque rompeu com a unidade do Ocidente e foi considerada ilegal porque não recebeu o aval da ONU e desfez uma aliança. O terrorismo que era o objetivo de combate pelos Estados Unidos não diminuiu e o atentado recente em Madri comprova isso. A guerra contra o Iraque não atingiu seu objetivo principal que era eliminar ou controlar o terrorismo. Isso vai provocar uma reação profunda na Europa que tem que se posicionar, mas está em uma dúvida muito grande porque tem que se entender com os Estados Unidos e esse entendimento é difícil pelo menos enquanto existir o governo Bush. A Europa tem outro modo de ver a estratégia para combater o terrorismo, diferente dos Estados Unidos. Se os dois não se entenderem o mundo ficará muito difícil.
Agência Brasil - E com relação ao Iraque?
Amado Cervo - Creio que não se possa dizer que nada tenha melhorado lá, embora os americanos tentem convencer a opinião internacional de que a vida dos iraquianos depois da queda de Saddan Hussein melhorou. Nos últimos 10 anos do regime de Saddan Hussein, ele não havia mais cometido nenhuma das suas tradicionais e grandes atrocidades de que ele realmente era culpado. Ele não invadia mais, não perseguia mais, foram 10 anos de uma relativa calma. As sanções econômicas da ONU decididas em razão da pressão norte-americana realmente prejudicaram muito esses 10 anos. Agora a situação no Iraque está muito difícil para os iraquianos porque eles não conseguem ainda estabelecer um consenso, sobretudo entre os três grandes grupos que são os curdos, os sunitas e os xiitas. Como se vai fazer um governo sem um mínimo de consenso entre os três segmentos sociais? Há uma perspectiva de bastante instabilidade política, por um lado e, por outro lado, a resistência à ocupação aliada é muito forte e inferniza a vida dos iraquianos. Não se pode organizar a produção, manter um comércio funcionando normalmente, manter escolas. Como disse o novo primeiro-ministro espanhol José Luiz Zapatero, a invasão foi um fiasco, não trouxe benefícios para os iraquianos, não produziu efeito do lado do combate ao terrorismo.
Agência Brasil – A tentativa norte-americana de implantar um governo democrático no Iraque pode dar certo?
Amado Cervo - Se realmente um governo representativo, um consenso nacional se estabelecer, ou como disseram os americanos "o nosso objetivo é a implantação da democracia", se uma democracia vingasse no Iraque seria bom, mas mesmo assim uma democracia em um país frágil e aterrorizado por esses traumas dos últimos anos que não fosse do interesse e proveito dos iraquianos, uma democracia tutelada ou sob ameaça, sob a presença de bases norte-americanas no país, não seria também um resultado positivo para os iraquianos. Acho que a conclusão é um pouco pessimista. O governo norte-americano e seus aliados produziram muitos males, dividiram a Europa, não permitiram que a estratégia européia de combate ao terrorismo fosse feita mais de diálogo, de negociação, de respeito das diferenças. Essa estratégia de usar os serviços de inteligência foi sacrificada diante da estratégia norte-americana feita de menosprezo das diferenças, de prepotência, de impor sua potência estratégica sobre os fracos. As conseqüências estão aí, é preciso reparar os danos da guerra contra o Iraque.
Agência Brasil – Como o senhor avalia a iniciativa brasileira anunciada pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, de restabelecer relações diplomáticas com o Iraque assim que o país recuperar sua soberania com a transição do governo norte-americano para os iraquianos, prevista para 30 de junho?
Amado Cervo – O governo brasileiro é coerente com essa decisão de restabelecer imediatamente relações diplomáticas, comerciais e econômicas, pois já manteve relações muito intensas com o Iraque. Porém, o repasse do governo aos iraquianos é uma coisa que paira ainda no horizonte de uma forma muito nebulosa. Nós não sabemos ainda em que consistirá essa devolução da soberania aos iraquianos, se os americanos vão ficar lá com presença militar, diplomática e política ou se realmente vão se retirar e os iraquianos vão ser capazes de administrar a si mesmos. O Brasil fez muito bem desde o início em não apoiar a guerra como fizeram muitas potências até certo ponto irrelevantes da periferia européia, como Espanha, Itália e Polônia, que ambicionaram um poder de que não dispunham. O Brasil foi realista, ficou longe do conflito. Agora, é óbvio que uma vez restabelecida a soberania e o Iraque restabelecendo suas relações diplomáticas, o Brasil deve ser um dos primeiros a aceitar e propor essa medida.
Agência Brasil – O que pode mudar nas relações entre Brasil e Iraque quando essa reaproximação se concretizar?
Amado Cervo – A realização de interesse brasileiros e as chances concretas de vantagens e benefícios na relação entre Brasil e Iraque são limitadas porque os americanos limitaram as iniciativas de reconstrução do Iraque (exploração e benefício da exploração do petróleo e das riquezas iraquianas) aos países que com compuseram a aliança. A aliança está se desfazendo, é preciso saber se os americanos vão manter a exclusão de outros países que não os apoiaram, para entrarem lá com seus empreendimentos, com suas empresas e ajudarem na reconstrução do Iraque como já estava fazendo a Espanha, a Itália e sobretudo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. O Brasil está nessa dependência, se o Iraque será um país de livre empreendimento ou será um país controlado por interesses, empreendimentos, capitais e empresas norte-americanos e de seus aliados de guerra. Fora isso, é óbvio que haverá uma margem de negócios livre que o Iraque poderá estabelecer com outros países. Nesse caso, por exemplo, o Brasil pode exportar produtos alimentícios, máquinas, móveis, se não puder entrar com seus serviços de engenharia e suas grandes empresas para reconstrução do Iraque. Há imprevisibilidade nesse ponto, se os Estados Unido vão aprender a lição e reabrir o Iraque sem querer tirar vantagens econômicas e materiais de uma guerra nefasta e deixar o Iraque estabelecer seus negócios livremente com todo o mundo. Se isto for viável, o Brasil terá grandes oportunidades, mas creio que serão restritas a um comércio bilateral. É coerente que o Brasil vá tratar o Iraque como trata os outros países, dentro da política externa adotada pelo governo do presidente Lula de ser uma política universalista, pacifista, que joga com variáveis como o combate à fome, mudanças nas regras do FMI em favorecimento dos países em desenvolvimento. Porém, é necessário distinguir consenso e poder. A política nacional é defendida pelas grandes potências. A União Européia se entende com os Estados Unidos quando seus interesses estão em jogo. Grandes decisões derivam dos grandes centros de poder. O Brasil não tem como mudar essa política apesar de se esforçar.