Entrevista: Mary Robinson diz que levará a Davos reivindicações dos movimentos sociais

18/01/2004 - 17h37

Por Bia Barbosa
Repórter da Agência Carta Maior

Mumbai, Índia – Ela chegou atrasada ao painel que abordou o tema da governança global. Mas nenhum participante do Fórum Social Mundial se sentiu desrespeitado por isso. Com um sorriso no rosto, o semblante sereno e a fala suave, mas firme, Mary Robinson, ex-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, veio à Índia ouvir a mensagem dos movimentos sociais que lutam por uma outra globalização. Na semana que vem, ela estará do outro lado da mesa, participando do Fórum Social Econômico, em Davos, para onde pretende levar as reivindicações daqueles que conhecem os prejuízos do neoliberalismo porque são vítimas deles.

Mas Mary Robinson também trouxe uma mensagem dos Estados Unidos, onde trabalha atualmente como funcionária da agência de cooperação internacional Oxfam: a sociedade civil organizada precisa exigir das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional, das organizações de comércio e principalmente de seus governos mais transparência e responsabilidade (o que se convencionou chamar de "accountability") na implementação e garantia do cumprimento dos direitos humanos no planeta.

"Quando somente dois países – Estados Unidos e Somália – não ratificam a Convenção sobre os Direitos da Criança e mesmo assim seis milhões de crianças por ano morrem de fome no mundo, há uma grande falha coletiva que não permite a implementação de compromissos legais assumidos pelos países. Isso precisa ser cobrado", afirmou.

Vaidosa, depois de passar batom e pó facial para tirar o brilho do rosto na frente das câmeras de TV, Mary Robinson deu uma entrevista a jornalistas presentes ao FSM. Leia abaixo os melhores trechos desta conversa.

Jornalistas -Hoje o escopo da luta dos direitos humanos é tão grande que praticamente tudo se refere ao tema. Isso não dificulta a luta pelos direitos mais básicos, como o direito à vida, à liberdade?

Mary Robinson – Sim, mas acredito que estamos fazendo progresso. Veja o exemplo das conferências internacionais. Se olharmos o texto da Rio 92, não há referência a direitos humanos. No ano seguinte, a Conferência de Viena sobre meio-ambiente também não. Mas na conferência em Johanesburgo sobre desenvolvimento sustentável houve discussões sobre o acesso à água como uma prioridade ambiental, como um assunto importante para o desenvolvimento e também como um direito do homem.

Jornalistas - Em que outros aspectos a luta pela defesa dos direitos humanos evoluiu nos últimos anos?

MR – O que aconteceu nos últimos 15 anos é que as questões de direitos humanos deixaram de parar nas fronteiras. Se você tem um país que viola os direitos humanos, tem formas, mecanismos, relatórios, comissões, o Alto Comissariado da ONU para fazer denúncias. Hoje os países discutem essas questões em nível diplomático. Na maioria das nações, mesmo nas menos democráticas, onde este combate é difícil, há defensores dos direitos humanos. São pessoas corajosas que lutam pelos direitos da crianças, combatem a descriminação contra minorias e lutam pela diminuição da pobreza. O que precisamos fazer é conectá-las e encorajá-las, desenvolver suas capacidades.

Há 20 anos, a sociedade civil não tinha a capacidade de influenciar as Nações Unidas. Era só a soberania dos países que contava. Os últimos anos viram o início de um processo, que espero que cresça. Acredito que participação popular faz parte dos direitos humanos. As pessoas deveriam ser capazes de participar nas decisões que as afetam.

Jornalistas - Há países que se abriram à globalização econômica e obtiveram alguns benefícios desta abertura. Na sua opinião a globalização é má por princípio?

MR – A globalização não é de todo má. O Fórum Social Mundial acontece por causa da globalização. Estamos aqui porque estamos conectados. Mas, na verdade, há mecanismos de poder dentro dos países do Norte que fazem com que os benefícios da globalização não cheguem a todos. 54 países ficaram mais pobres nos anos 90. Eu acho que a Índia está fazendo um progresso econômico, mas estou preocupada que isso não esteja beneficiando as pessoas daqui. Não devemos virar as costas para a globalização, mas acho que deveríamos moldá-la, dar a ela valores, para que não seja positiva apenas para o benefício das corporações. Esta é uma crítica que devemos encaminhar aos governos em nível global e também nacional. E este é um grande desafio para o Fórum.

Jornalistas - Você acha que um movimento amplo como este é capaz de reunir mais forças para moldar a globalização corretamente?

MR – Acho que vozes diferentes são um reflexo muito verdadeiro da diversidade do nosso mundo. E uma das más tendências da globalização econômica e corporativa é tentar fazê-las todas iguais: uma só língua, uma forma de pensar o Consenso de Washington, de achar que a privatização é necessariamente boa e aí por diante. Este movimento valoriza a diversidade. É um Fórum onde todos se sentem confortáveis, ninguém se sente excluído. O próximo passo é levar essa mensagem para outra arena. Daqui eu vou para o encontro "Olho Público em Davos" (organizado por ONGs na cidade antes da abertura do Fórum Econômico Mundial) e depois para o Fórum Econômico. Espero levar para lá um pouco do espírito, da solidariedade, do compromisso que existe aqui no Fórum Social Mundial, porque as pessoas precisam ouvir isso.

Jornalistas - Você acha que as vozes daqui serão ouvidas com respeito?

MR – Acho que a credibilidade deste Fórum veio da forma como ele foi organizado em Porto Alegre e foi importante que ele tenha vindo para a Ásia. Se existe ou não um outro mundo possível, então devemos ouvir sobre ele, ouvir as alternativas para esta globalização econômica egoísta.

Jornalistas - O tipo de globalização que a comunidade internacional está adotando é um gerador natural de conflitos e de guerras?

MR– É preocupante que haja guerras como a do Iraque, declaradas por poucos países e justificadas por argumentos como as armas de destruição em massa. Saddam Hussein era um mau ditador e a situação dos direitos humanos no Iraque era muito ruim. Havia relatórios anuais feitos sobre o Iraque e ninguém os lia. Mas há falta de legitimidade quando países arrogam para si o direito de atacar outra nação para melhorar a situação dos direitos humanos. Não é isso que deve acontecer quando existe a Carta da ONU, que tem critérios muito claros para que haja uma intervenção. E nenhum desses critérios existiu no caso do Iraque.

Jornalistas -Essa situação pode se repetir se continuarmos neste caminho?

MR – Acho que o que aconteceu no Iraque foi um chamado de alerta. Muitos governos e grande parte da sociedade civil agora se preocupam com este tipo de ação, o que está levando à discussão sobre a necessidade de promover a segurança dos povos sem o conceito de intervenções militares.

Jornalistas -Em que linha se dá a luta pelos direitos humanos dentro dos Estados Unidos?

MR – Infelizmente a administração atual é culturalmente hostil a temas como o direito à alimentação, à água limpa, à educação para a saúde, que se desenvolveram ao lado da luta pelos direitos humanos. O governo americano vê isso muito mais como uma aspiração política e prefere falar em compaixão e necessidade. Mas isso é completamente diferente do que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos