Agricultura e qualidade da água: contaminação da água por nutrientes

15/11/2002 - 6h41

Agricultura e qualidade da água: contaminação da água por nutrientes

Álvaro Vilela de Resende (*)

No Brasil, até poucos anos atrás, a gestão de recursos hídricos não era assunto prioritário em nenhuma das esferas de planejamento e nem mesmo no âmbito científico, situação esta que possivelmente se devia à grande abundância de água na maior parte do território nacional. Contudo, há tempos são conhecidos diversos exemplos de outras regiões do planeta onde, por causas naturais ou induzidas, áreas antes bem providas tornaram-se altamente restritivas às atividades humanas quando a falta de água passou a ser o fator limitante.

Recentemente, a grande preocupação nacional tem sido em relação à redução da quantidade de água nos rios, com efeito direto na capacidade de operação das hidrelétricas, produtoras da energia que move o país. De forma talvez menos visível, a cada dia, a água com qualidade adequada ao consumo humano vem se tornando mais escassa, o que tem chamado a atenção da comunidade científica e da sociedade organizada para a fragilidade dos ciclos naturais que governam a renovação e a disponibilidade da água.

Como conseqüência do crescimento vertiginoso das atividades urbanas e agropecuárias experimentado pela maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, há indicativos de que a qualidade da água pode ser comprometida, de uma maneira tal que o homem ainda não dispõe de meios para reversão do problema. Assim sendo, a melhor alternativa técnica e econômica parece ser o controle efetivo dos fatores e processos que levam à contaminação da água.

Uma vez que os mananciais de água não são estáticos, a contaminação de determinada área pode se estender por toda uma região e muitas vezes não é possível discriminar a origem do contaminante, como é o caso dos grandes rios poluídos tanto pelas atividades agrícolas quanto pelos efluentes urbanos.

Muito embora não seja o único agente responsável pela perda da qualidade da água, a agricultura, direta ou indiretamente, contribui para a degradação dos mananciais. Isto pode se dar por meio da contaminação dos corpos d’água por substâncias orgânicas ou inorgânicas, naturais ou sintéticas e ainda por agentes biológicos. Amplamente empregadas, muitas vezes de forma inadequada, as aplicações de defensivos, de fertilizantes e/ou de resíduos derivados da criação intensiva de animais são tidos como as principais atividades relacionadas à perda da qualidade da água nas áreas rurais.

Os rios, lagos, represas e açudes podem receber grandes quantidades de nutrientes, principalmente em regiões de solos desprotegidos. Juntamente com as partículas arrastadas pela água durante o escorrimento superficial ou em outros processos erosivos, os nutrientes presentes na superfície do solo são perdidos das áreas agrícolas e atuarão como contaminantes da água.

Para se avaliar a extensão deste problema, basta lembrar que a maior parte do território brasileiro é cortada por cursos d’água que garantem o abastecimento das fazendas e comunidades desde os vilarejos até as metrópoles. Com certeza, na maior parte do país, as reservas de água superficiais constituem a principal fonte de água para o consumo humano direto e para a utilização nas mais diversas finalidades.

A utilização de águas subterrâneas tem aumentado intensamente no mundo todo e também no Brasil. Esta situação se deve à ocupação de áreas menos providas de água de superfície (ex: regiões semi-áridas), ou constitui forma de se obter água melhor qualidade em regiões já poluídas, ou ainda para viabilizar grandes volumes de água para irrigação. Em princípio, os aqüíferos subterrâneos se encontram mais protegidos da contaminação, mas esta ocorre quando a água da chuva ou de irrigação, ao percolar o solo, arrasta consigo substâncias dissolvidas (processo de lixiviação) que poderão ter como destino final o lençol freático ou os aqüíferos profundos. Em função da interação característica dos nutrientes em formas iônicas com a fase sólida do solo, a natureza do nutriente e os atributos químicos e físicos do solo são os principais fatores que condicionam a movimentação de um dado nutriente em profundidade e, consequentemente, o seu potencial de contaminação.

A presença de nutrientes na água é parte dos ciclos normais da natureza e para a maioria dos nutrientes vegetais não têm sido relatados problemas em relação a níveis excessivos. O problema de contaminação fica restrito a alguns micronutrientes e, principalmente, aos macronutrientes nitrogênio e fósforo.

Entre os micronutrientes zinco, cobre e manganês em situações específicas de certas atividades agrícolas e principalmente industriais podem se concentrar ou acumular no solo e eventualmente atingir a água. Ao que tudo indica, em geral, estes metais pesados têm menor mobilidade no solo e assim a ocorrência de contaminação mais provável seria por meio de processos erosivos.
Em virtude da forte retenção do fósforo pelas partículas do solo, o processo de poluição da água subterrânea por lixiviação de fosfatos é de magnitude desprezível, especialmente nas condições dos solos tropicais. Por outro lado, inúmeros casos de acréscimo de fósforo nas águas superficiais indicam que o escorrimento superficial de água e a erosão dos solos são os principais agentes da contaminação de mananciais de superfície com fosfatos em áreas agrícolas.

Do ponto de vista de saúde, o enriquecimento da água em fósforo não traz maiores problemas, já que trata-se de um elemento requerido em elevadas quantidades pelos animais em geral. Entretanto, este enriquecimento pode trazer sérios problemas em termos de desequilíbrio dos ecossistemas aquáticos devido ao processo de eutroficação, que consiste da proliferação exagerada de algas e plantas aquáticas. Como conseqüência, pode haver redução da penetração de luz em profundidade, alterando o ambiente subaquático. Plantas aquáticas podem criar bancos de vegetação submersa retendo sedimentos e vindo a dificultar a navegação. Além disso, a própria respiração e os restos de plantas e algas mortos depositados no fundo provocam a redução na disponibilidade de oxigênio, culminando com a mortandade de peixes e outros organismos.

As medidas de controle da eutroficação por fósforo nas áreas de exploração agrícola basicamente são o correto dimensionamento das adubações associado às práticas convencionais de controle da erosão do solo.

Das diversas formas de nitrogênio presentes no solo a amônia (NH3) e, em especial o nitrato (NO3-), podem ser causas da perda de qualidade da água. Embora a amônia estando presente na água seja altamente letal aos peixes pela toxicidade que representa para este grupo da fauna, quando originada no solo ou aplicada via fertilizantes essa molécula tende a ser convertida a amônio (NH4+) e este por sua vez é convertido a nitrato por processos microbianos.

Portanto, o nitrato é a principal forma de nitrogênio associada à contaminação da água pelas atividades agropecuárias. Isto ocorre pelo fato de que o ânion nitrato, caracterizado por ser fracamente retido no solo, tende a permanecer mais em solução, principalmente nas camadas superficiais do solo, onde a matéria orgânica acentua o caráter eletronegativo das partículas de solo (repelindo o nitrato). Na solução do solo o nitrato fica muito propenso ao processo de lixiviação e ao longo do tempo pode haver considerável incremento nos teores de nitrato nas águas profundas.

A intensidade do processo de contaminação depende principalmente das quantidades de nitrato presentes ou adicionadas ao solo, da permeabilidade do solo, das condições climáticas (pluviosidade) e de manejo da irrigação, e da profundidade do lençol freático. Merece destaque também o fator de que a elevação dos teores nitrato na água é indicativo de risco potencial para a presença de outras substâncias indesejáveis, tais como muitas moléculas sintéticas de defensivos agrícolas que possivelmente se comportam de forma análoga ao nitrato.

Da mesma forma que ocorre para o fósforo, o enriquecimento excessivo de águas superficiais em nitrato leva à eutroficação dos mananciais. Pode haver problema também em relação à saúde animal, pois os ruminantes (bovinos e ovinos) e alguns monogástricos (eqüinos) possuem no trato digestivo, bactérias que convertem nitrato a nitrito levando a uma forma de envenenamento. Embora pessoas adultas possam ingerir quantidades relativamente altas de nitrato através de alimentos e da água e excretá-lo pela urina sem maiores conseqüências prejudiciais à saúde, bebês menores de seis meses de idade podem apresentar envenenamento devido à diminuição da capacidade do sangue transportar oxigênio. Nesta situação a criança sofre asfixia ficando com a pele azulada, sintomas típicos da metahemoglobinemia ou síndrome do bebê azul.

Recentemente, embora sem dados confirmados para o organismo humano (uso de cobaias), altas concentrações de nitrato têm sido associadas à ocorrência de câncer estomacal ou de esôfago. Face ao risco que representa, a concentração de nitrato na água para consumo humano não deve exceder 10 mg de N-NO3-/L ou 44 mg de NO3-/L, de acordo com os limites adotados pela United States Environmental Protection Agency (Usepa) e outras entidades ligadas ao monitoramento e proteção ambiental.

A compatibilização das taxas de suprimento de nitrogênio com a demanda da cultura no decorrer do seu período de crescimento vegetativo constitui o aspecto principal do que deve ser buscado em termos de aumento da eficiência da adubação nitrogenada e concomitante redução do risco de lixiviação de nitrato. Para tanto, uma boa estimativa da disponibilidade do nutriente no solo (teor de nitrato, teor de matéria orgânica, tipo e quantidade de palhada da cultura anterior) e o conhecimento dos requerimentos nutricionais da cultura a ser implantada nos seus diferentes estádios de crescimento, das condições climáticas prováveis durante a estação de cultivo, das características de permeabilidade do solo e da taxa de liberação de nitrogênio pelo fertilizante a ser utilizado (principalmente no caso dos estercos) precisam ser analisados de forma integrada a fim de ajustar a melhor dosagem, forma e época de aplicação dos adubos.

Atingir tal propósito na íntegra não é tarefa fácil e requer esmero, mas técnicas simples podem proporcionar sensíveis ganhos de eficiência, notadamente nas condições brasileiras onde os excessos de nitrogênio na adubação não são a regra na agricultura e quando ocorrem estão ligados à inobservância de critérios básicos de manejo. O parcelamento da adubação nitrogenada, de acordo com os períodos de demanda das culturas, talvez seja a maneira mais fácil de ganhar eficiência e deve ser medida priorizada quando as condições de solo (alta permeabilidade) e clima (chuva intensa e freqüentes) favorecem a possibilidade de lixiviação de nitrato.

Álvaro Vilela de Resende é pesquisador da Embrapa Cerrados, em Planaltina (DF), fone (61) 388. 9898, endereço eletrônico: alvaro@cpac.embrapa.br