Oposição pode se alinhar contra projeto “hegemônico” de Kirchner, afirma deputado

14/10/2007 - 14h40

Julio Cruz Neto
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Freddy Storani,político de oposição na Argentina, faz suaanálise da eleição presidencial marcada para 28de outubro. Ele é deputado nacional, vice-presidente daComissão de Relações Exteriores da Câmarados Deputados e dirigente da União Cívica Radical(UCR), partido do ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, que tentalevar a favorita Cristina Kirchner para o segundo turno.AgênciaBrasil: As pesquisas indicamque Cristina Kirchner tem tudo para ganhar a eleição noprimeiro turno. Roberto Lavagna tem chance de provocar o segundoturno?Freddy Storani:Sim, estamos otimistas de que a candidatura de Lavagna vai crescer.Primeiro porque o ponto forte da candidatura de Kirchner era atéagora o crescimento econômico, ainda que seja por fatoresexternos, como o alto preço das commodities e produtosprimários e os juros baixos, que favorecem a Argentina. Mashoje aparecem problemas, como a inflação, que émuito superior à que o governo declara, tanto que setransformou quase em escândalo nacional a administraçãodo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos [Indec]com as manipulações do governo.ABr: Em quantovocê avalia a inflação real?Storani: Peloque disse Lavagna, que é economista, 15% ao ano pelo menos [aoficial foi de 9,8% no ano passado]... Em segundo lugar, aquestão energética. O governo, de maneira teimosa,apesar das advertências que fizemos durante muitos anos, de queera preciso investir em infra-estrutura... A crise energéticatambém está golpeando [o governo] e isso temincidência não só no humor das pessoas, que ficamsem luz e não têm gás suficiente em casa quandofaz frio, mas também no crescimento, porque houve indústriasque tiveram que parar por muito tempo, trabalhar em ritmo inferior.Um terceiro ponto, vinculado à questão econômica,é a pecuária, tanto que tiveram que suspender asexportações para abastecer o mercado interno, e issodeixa muitos produtores tradicionais insatisfeitos. Esses sãoos pontos mais fortes que o governo tinha, porque nos outros... Éum governo que não respeita as instituições. Porexemplo, há recorde de decretosde necessidade e urgência [espécie de medidaprovisória], uma forma de iludir o Congresso e opovo. O chefe de gabinete (Alberto Fernández) tem superpoderespara alterar o destino das verbas do Orçamento, o que éuma falha institucional muito grave. Outro ponto é a mudançada composição do Conselho da Magistratura, órgãocriado pela Constituição que era formado por juízes,advogados, legisladores, acadêmicos etc, similar ao que ocorrena Itália, Espanha, França...ABr: E qual afunção?Storani: Podedesignar ou remover juízes, por mau desempenho. A mudançana composição, que passou de 20 membros para 13, e commaioria do governo por causa da maioria no Parlamento, tiroucredibilidade e independência da Justiça. Hoje, osjuízes ficam atemorizados se atuam contra o governo egeralmente só são designados se são amigos dogoverno. Muitos juristas advertiram sobre isso e é um temasumamente grave. E o último ponto é o projeto políticode Kirchner, que é hegemônico. Se tivesse feito umaconcertação à chilena, chamado os partidosinstitucionalmente representados... mas não fez isso. Tratoude roubar dirigentes dos partidos políticos, também donosso [o candidato a vice de Cristina, Julio Cobos, é umdissidente dos radicais]. Para nós, isso é umretrocesso para um esquema democrático verdadeiro. Por todasessas razões, somadas aos escândalos de corrupçãorecentes...ABr: Estavaestranhando que ainda não tinha mencionado isso.Storani: Deixopara o final porque é o que mais chama a atenção[detalha três casos e o da mala, o mais recente, em que umempresário venezuelano tentou entrar na Argentina com US$ 800mil sem declarar]. O famoso caso da mala, num aviãocontratado por uma empresa do Estado, com funcionáriosargentinos e venezuelanos, com passaporte oficial, é umverdadeiro escândalo que mostra que existe uma matriz, nãoé um caso isolado.ABr: O vice deKirchner é um radical dissidente. Como isso ocorreu?Storani: Éum grupo que não aceitou as decisões da convençãonacional do nosso partido, com representantes de todas as províncias(estados). Se você olhar para trás, verá queKirchner disse a eles para não irem à convençãoporque iam perder. Como tem os recursos fortemente centralizados,porque a co-participação federal de impostos nãofunciona, ele tem grande capacidade de influência sobre osgovernos de província. Isso - somado à ambiçãopessoal, como a desse governador Cobos, de Mendoza - fez com que nãoaceitassem [a candidatura Lavagna, decidida por “amplíssimamaioria”, segundo ele].ABr: Issoenfraqueceu muito o partido?Storani: Doponto de vista de alguns dirigentes notáveis, claro que sim,porque alguns são governadores de província. Mas doponto de vista da base partidária, não. As pessoasestão bastante indignadas, tanto que no ato de apresentaçãoda candidatura de Cristina, quando se mencionava os radicais, amaioria peronista assobiava, e quando se mencionava Raul Alfonsín,que é o sem dúvida o líder do nosso partido, ovaiavam. É um papel muito indigno, não é umaverdadeira concertação.ABr: Hátempo suficiente para que esses temas sejam colocados no debateeleitoral (a eleição será em 28 de outubro) ouvão prevalecer a diminuição do desemprego, amelhoria dos índices sociais, questões que...Storani: Quemais preocupam as pessoas?ABr: E que sãopontos fortes do governo.Storani: Nãosão fatores excludentes. Veremos, ainda faltam praticamentetrês meses [quando a entrevista foi feita, faltavam naverdade 2 meses e 11 dias]. Creio que dia-a-dia o governo, aindaque seja pouco, vai perdendo algo, e dia-a-dia a oposiçãovai recuperando algo. Se vai ser suficiente para haver segundo turno,não posso dizer, mas somos otimistas.ABr: Se houversegundo turno, os outros candidatos se unem? Qual o cenáriomais provável?Storani: Sehouver segundo turno, o cenário mais provável éque, mais que uma união de dirigentes ou de candidatos, vaihaver um alinhamento espontâneo das pessoas, porque o fenômenopelo qual passa a Argentina, como quase todo o mundo, é aperda de importância relativa dos partidos políticosorganizados. As pessoas se movem mais livres, mais soltas.ABr: Incluindoos radicais?Storani: Claro,temos nossa crise. Mantemos um partido organizado nacionalmente, commuitos prefeitos, muita representação, mas sofremosparte dessa crise. Se houver segundo turno, creio que haveráum alinhamento espontâneo em torno do candidato mais votado daoposição, que nós acreditamos que seráLavagna.ABr: Mesmoconsiderando que Lavagna e Carrió, por exemplo, têmvisões político-econômicas distintas, sendo elamais conservadora e ele mais internacionalista, mais aberto aosmercados?Storani: Porisso digo que a união vai ser mais espontânea que dedirigentes. Carrió não tem um plano econômico,tem um apelo mais moral, de denúncia da corrupção.Mas do ponto de vista econômico é bastante volátil,não tem uma formação sólida. Não éo caso de Lavagna, que não só foi minsitro da Economiamas é um economista reconhecido, que ajudou a superar a crisenos piores momentos. Creio que mais que um acordo, haveria umacoincidência espontânea daqueles que não querem oestilo Kirchner, o estilo hegemônico.ABr: Se háessa hegemonia, é possível fazer algum tipo decomparação entre o projeto de Kirchner e o de Chávez?Storani: Nãosei se tanto, porque Chávez tem um estilo muito mais aberto,que avançou sobre áreas sensíveis como os meiosde comunicação de massa. E também o manejo derecursos econômicos, como o controle do preço do barrildo petróleo, que aplicado à política édeterminante. Assim como os alinhamentos de Chávez em políticainternacional são muito mais desafiadores. Mas Kirchner buscaum modelo hegemônico voltado para dentro, com o estilo dotradicional do peronismo, e não uma verdadeira concertaçãoplural, ao contrário do que diz publicamente. Desde queassumiu, jamais chamou para conversar os partidos de oposição.ABr: Aproximidade com a Venezuela tem futuro com a iminência dareforma constitucional, que deve aprofundar os temas em que Chávezdiz apostar para construir um Estado socialista, além depermitir a reeleição por tempo indeterminado?Storani: AVenezuela contribuiu financeiramente na compra de bônusargentinos, substituiu fontes de financiamento, e isso condicionou,de certa forma, as ações do governo de maneiranegativa... Por exmeplo, em um tema sensível, já quefalávamos da crise energética... Nós, assim comoo teu país, temos um grande potencial para biocombustível,porque temos óleos vegetais de sobra, a Argentina é oprincipal exportador mundial. No entanto, a política agressivade Chávez, tratando [o biocombustível] como umaquestão progressista porque pode afetar a alimentação...ele está apenas defendendo seus próprios interesses,que não coincidem com os nossos. A Argentina não érica em petróleo, em gás, mas é rica napossibilidade de produzir biocombustível. Isso requer umplanejamento estratégico, que obviamente entraria em choquecom a política venezuelana. (Na época em queBrasil e Estados Unidos assinaram acordos para ampliar a produçãode etanol, Hugo Chávez e Fidel Castro alertaram para o perigode que poderia gerar um aumento no preço de alimentosimportantes como o milho, principal matéria-prima usada paraessa finalidade nos EUA)ABr: Em relaçãoao Mercosul e à inserção (ou nãoinserção) internacional da Argentina atualmente, quaisas perspectivas em caso de vitória de Cristina e de Lavagna?Storani: Seganhar Cristina... Eles trataram nos últimos tempos de mostrarmais abertura, mas tenho a impressão que será puracontinuidade. No caso de Lavagna, a proposta é claramente demais abertura. Lavagna é um defensor público e convictodo fortalecimento do Mercosul e da relação especial quedesenvolvemos desde o início do Mercosul com o Brasil. E umaabertura não tomada por questões ideológicas.Não estamos mais na Guerra Fria, então precisamos teruma agenda política que faça do Mercosul uminterlocutor respeitado pelos países centrais, mas sem umaconfrontação artificial, como Chávez àsvezes busca. Digo Chávez e não Venezuela, porqueaspiramos que a Venezuela, como país, como nação,como povo, se integre ao Mercosul, porque são tambémnossos irmãos. Mas o tratamento dado por Chávez éo que às vezes dificulta essa situação.ABr: Entãoo Mercosul com Lavagna, sem esse caráter ideológico,seria apenas um bloco econômico de livre-comércio?Storani: Hátambém uma agenda política, como a questão domeio-ambiente. Assim como o Brasil tem a questão da Amazôniae do Amazonas, nós temos pendente a questão doAtlântico Sul. Desde a ocupação britânicanas Ilhas Malvinas, eles deram licenças de pesca que estãodepredando a riqueza do Atlântico Sul. Por isso, me parece quehá também a possibilidade de uma agenda políticapara além do livre-comércio e de consolidaçãodas instituições.