Lia Rangel e Nelson Motta
Repórteres da Agência Brasil
Manaus (AM) - Antes de embarcar para Nova York, enquanto esperava em Manaus pela chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado de outros quatro ministros que vinham de São Paulo, o chanceler brasileiro Celso Amorim concedeu à Agência Brasil entrevista exclusiva.
Em quase uma hora de conversa, Amorim falou sobre as estratégias e os desafios do Brasil em sua inserção na nova ordem mundial. "Já disse mil vezes: não estamos indo para os Estados Unidos, e sim para as Nações Unidas". O aviso se justifica pelo fato de que Lula participará efetivamente das ações do maior fórum internacional do mundo. O ministro reiterou a intenção do país de contribuir para o fortalecimento da ONU e criticou a postura norte-americana de ignorar o multilateralismo. Também comentou os objetivos de Lula ao visitar Vicente Fox, presidente mexicano, e Fidel Casto, líder cubano no poder há mais de 40 anos. O chanceler não discutiu o isolamento da ilha, nem a posição política de Fidel. Apenas afirmou que o Brasil adota uma política de cooperação com o país. A seguir, a íntegra da entrevista.
Agência Brasil – Esta é a 58a vez que o Brasil abre a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas. Durante muito tempo, esse foi o único espaço em que o país tinha a oportunidade de expor seu ponto de vista para a comunidade internacional. Neste ano é diferente. Os acontecimentos em Cancun e a possível indicação de Lula para o Nobel da Paz o colocam como uma liderança. O que representa a participação do presidente Lula nesse novo contexto?
Celso Amorim – Obviamente ele já esteve em vários fóruns de natureza mundial, como Davos e Evian. Mas esse é realmente a grande Assembléia das Nações. E, como o Brasil vai abrir o debate geral, Lula terá a oportunidade de falar a todas as nações e levar a mensagem de seu governo, de um Brasil novo, com confiança e auto-estima. Um Brasil que está realizando um processo interno de reformas com forte conteúdo social. Ao mesmo tempo, ele quer levar essa visão de reforma, de justiça social e também de plena democracia política para as relações internacionais.
Essa liderança se deve, primeiramente, à própria personalidade do presidente, por sua história de vida mais do que qualquer outra coisa. Mas também ao fato que essa projeção de objetivos, alguns de política interna, no plano internacional, correspondem a algo que a própria sociedade civil internacional está esperando. Existe um mal-estar com a globalização. É um sentimento que se opõe também a fatos positivos, como o desenvolvimento tecnológico. A maior possibilidade de comércio, por outro lado, tem sido acompanhada por grandes entraves, que resultam no aumento do fosso entre ricos e pobres.
A alteração desse quadro, o combate à fome no plano internacional, uma maior justiça nas relações comerciais e nas relações políticas, bem como o fortalecimento do multilateralismo são essencialmente a mensagem do presidente Lula.
Agência Brasil - A ONU e outros organismos multilaterais estão vivendo um momento extremamente difícil, de crise. O próprio Kofi Annan disse que as estruturas da organização estão arcaicas e têm de ser reformadas, pois não respondem mais à necessidade atual. Como o Brasil vai se posicionar a respeito dessa questão e da própria postura dos EUA, que estão aumentando as negociações bilaterais e ignoram, em alguns casos, a importância do multilateralismo?
Celso Amorim - A mensagem é de apoio ao multilateralismo, mas também às reformas. Nós concordamos que as Nações Unidas - hoje basicamente com o mesmo desenho que elas têm há quase 60 anos -, não correspondem às necessidades do mundo atual. Existem novas ameaças, como o terrorismo e a possibilidade de armas de destruição em massa serem utilizadas por grupos subestatais. A ONU tem o potencial lidar com esses problemas, mas para tanto tem de ser reformulada. Devem existir mais instrumentos permanentes, acho eu. Como por exemplo, no Conselho de Segurança. No que diz respeito à verificação das armas de destruição em massa, não pode haver uma crise cada vez que houver uma dúvida. Tem de haver um mecanismo mais ágil, sob o comando das Nações Unidas, e não desse ou daquele país. Esse é um exemplo. Outra questão é a efetividade das ações do Conselho e sua legitimidade. Não só no sentido legal, mas também no político. As ações do Conselho têm de ter respaldo internacional.
Agência Brasil - Respaldo bastante defasado, como mostraram as ações americanas no Iraque.
Celso Amorim - Para que as ações tenham respaldo é preciso que o Conselho de Segurança seja representativo. Ele não pode ter uma composição que essencialmente é a mesma de 1945. Daí a necessidade de reformar o Conselho.
Agência Brasil - E qual é a proposta do Brasil para uma reforma?
Celso Amorim - O próprio secretário-geral da ONU já levantou algumas idéias. Nós temos as nossas, naturalmente, mas acho que o importante é dar impulso a um processo de reforma. Sobre o Conselho de Segurança, propomos o aumento o número dos membros permanentes e não permanentes, contando com a participação de um país em desenvolvimento entre os permanentes. Esse é o grande desequilíbrio que existe. Também devem ser dados ao Conselho de Segurança instrumentos mais eficazes. Outro ponto: devemos revitalizar o Conselho Econômico e Social. Na década de 50, as grandes figuras mundiais se apresentavam lá. Com o tempo, o órgão foi se tornando burocrático. E esse deveria ser o grande órgão para serem discutidos os temas econômicos e sociais no âmbito das Nações Unidas.
Agência Brasil- O Brasil vai reiterar sua intenção de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança?
Celso Amorim - Claro. Todos sabem que o Brasil tem dito e se considera apto a ocupar esse posto desde que ele tenha apoio dos países, e nós temos tido. Para tanto, será necessário reformar a Carta da ONU, o que é não é fácil. Imagine reformar a Constituição do Brasil sendo que quatro ou cinco parlamentares tivessem o poder de veto. Na realidade, uma proposta como essa tem de abarcar a grande maioria dos países, pelo menos dois terços, para poder ser aprovada na Assembléia Geral e além desses, necessariamente, os cinco membros permanentes. Como um jogo, onde há discordâncias legítimas e também pequenas rivalidades regionais que dificultam. O desafio agora é: o que precisamos fazer para tornar a ONU atual? Temos de revisitar certos conceitos, olhar o papel da Assembléia Geral. Sobre o Iraque, não digo que tenha havido um fracasso da ONU. Sabemos, porém, que houve algo que afetou a confiança das pessoas no que se refere à capacidade da ONU de agir. Portanto, esse momento de crise é propício para se buscar reformas.
Agência Brasil – Caso o Brasil consiga o assento permanente no Conselho de Segurança, ele terá de arcar com uma maior participação financeira na Organização?
Celso Amorim - Há uma desinformação muito grande sobre isso. O orçamento da ONU se divide em duas partes: um é o regular, o outro é o orçamento para as operações de paz. Cerca de 70% dos US$ 30 milhões que gastamos anualmente fazem parte do orçamento regular. Neste caso, não há nenhum acréscimo caso o país se torne membro permanente. Tanto assim que a China contribui com um valor que representa a metade do que destinamos a ONU.
Agência Brasil- O Brasil tem uma dívida com a ONU de cerca de US$ 100 milhões. Isso não pode ser um empecilho para a eleição do país como membro permanente do Conselho?
Celso Amorim – O presidente Lula tem a intenção de quitar a dívida o mais breve possível. O valor soma hoje exatamente US$ 108 milhões.
Agência Brasil Em grande parte, a crise de legitimidade pela qual a ONU está passando, deve-se a ação do governo Bush, principalmente por ele ter passado por cima das decisões do Conselho de Segurança no momento em que se deu início a Guerra no Iraque. Como o senhor vê essa relação dos Estados Unidos com os organismos multilaterais, neste caso com as Nações Unidas?
Celso Amorim – O que estamos vendo agora, com a discussão sobre uma nova resolução das Nações Unidas e do Conselho de Segurança para se formar uma força multinacional no Iraque, demonstra que mesmo a maior potência não consegue realizar as coisas sozinhas no mundo de hoje. Os Estados Unidos, do ponto de vista exclusivamente militar, talvez conseguissem, mas hoje em dia não se vive só mais. Estamos num contexto diferente, felizmente. Há uma consciência de que é preciso mudar. O Brasil declarou claramente a sua posição contra o uso da força. Esse, que é um recurso extremo, só pode ser utilizado quando se tem o aval do Conselho de Segurança, o que não ocorreu no caso do Iraque.
Agência Brasil - O presidente Lula vai participar do seminário "A humanidade em prol da luta contra o terrorismo", organizado pelo primeiro-ministro norueguês. Lula é o único representante dos países em desenvolvimento que falará ao lado de Koffi Annan, Jacques Chirac e o prêmio Nobel, Elie Wiesel. O Brasil não é uma vítima potencial de ataques terroristas. O que o presidente pode acrescentar para esse debate? O que significa o convite?
Celso Amorim - O convite, feito pelo ministro norueguês quando ele esteve no Brasil, representa o reconhecimento de que o presidente Lula é hoje uma liderança importante e que o apoio dele para qualquer medida que se venha a tomar terá repercussão no resto do mundo. Obviamente temos que condenar qualquer tipo de terrorismo e queremos que as causas profundas do terrorismo - que estão muitas vezes ligadas à pobreza, miséria ignorância - também sejam combatidas. É uma ocasião também para demonstrar que o terrorismo só será combatido com meios multilaterais, através do direito internacional.
Agência Brasil - O presidente Lula foi realmente indicado ao Prêmio Nobel da Paz?
Celso Amorim – Eu só sei o que vi nos jornais. Não tive tempo de verificar.
Agência Brasil - O Brasil participará de importantes discussões sobre o combate e controle a Aids, tema que o país aborda com muita propriedade, tendo em vista o reconhecimento internacional das medidas de distribuição gratuita dos medicamentos anti-retrovirais.
Celso Amorim – Na mesa redonda que será realizada para discutir o assunto quem vai participar é o ministro da Saúde Humberto Costa. O presidente tratará do assunto quando discursar na Assembléia Geral. Depois, ele terá encontros bilaterais, outros trilaterais. Um muito importante será entre ele, o primeiro ministro da Índia e o presidente da África do Sul. Nós temos atuado muito em conjunto, o que facilitou muito a formação do G-20/plus na OMC. Outra iniciativa que dever ser ressaltada é o almoço que o presidente Lula está oferecendo em homenagem a Koffi Annan, que contará com a participação também de vários líderes de países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Agência Brasil - O que basicamente vai ser discutido entre Brasil, Índia e África do Sul?
Celso Amorim– Presumo que alguma idéia será trocada sobre o tema da pobreza e da fome. Queremos ajudar a encontrar modalidades que existam ou que venham a ser criadas que possam ter resultados práticos para o combate à fome. Muito provavelmente eles abordarão questões relacionadas ao que virá daqui por diante depois das discussões de Cancún. Os três países são muito comprometidos com o multilateralismo, inclusive com êxito das negociações. Enfim, eles devem tratar também da reforma das Nações Unidas.
Agência Brasil Em Cancún as conversas dos principais temas de interesse do Brasil, como as questões agrícolas, ficaram congeladas. Existe a perspectiva de que elas sejam concretizadas?
Celso Amorim – A declaração que foi aprovada no fim das discussões em Cancún instrui os delegados dos países a retomarem as negociações em Genebra. O Brasil e os outros do G- Plus vão trabalhar para que isso ocorra rapidamente para que,se for possível, até a rodada de Doha tenhamos uma resolução final. Vai depender muito da vontade política dos grandes países, como os Estados Unidos e os integrantes da União Européia. Eu acho que nós precisamos da OMC, mas eles também precisam, porque a alternativa sem OMC é guerra comercial. Acordos bilaterais não são as melhores alternativas.
Agência Brasil - Na quinta-feira o presidente encerra sua participação na ONU e parte para o México para se encontrar com seu homólogo, Vicente Fox. Qual o objetivo dessa viagem?
Celso Amorim – É uma visita de trabalho. Ela será rápida. O presidente deve chegar as cinco da tarde, terá encontro às seis horas e um jantar. Será mais um preparativo para outras visitas no futuro. O México é parceiro comercial muito importante para o Brasil. Nós temos hoje um comércio grande, principalmente no setor automobilístico, mas existe a possibilidade de crescimento em outras áreas. Serão tratadas também questões relacionadas à Alça e a possíveis acordos entre o México e o Mercosul.
Agência Brasil – E a visita a Cuba?
Celso Amorim – Primeiro há muitos projetos de cooperação que estão sendo discutidos em áreas muito variadas, entre elas a bio-farmácia. Temos uma missão, que já está em Cuba, ligada a pesca, mineração e ao setor sucro-alcooleiro. Devemos discutir também a renovação de um acordo do Banco do Brasil com o Banco Cubano que vai viabilizar a concretização de todos esses acordos comerciais. Empregaremos a filosofia de que a melhor maneira de ajudar o povo cubano é cooperar.
Agência Brasil– Qual a visão do governo brasileiro em relação situação política de Cuba?
Celso Amorim - Nossa visão é que não é uma coisa positiva o isolamento. Obviamente o Brasil tem uma política diferente do sistema cubano e preferimos o nosso. Agora, na véspera de nossa visita, não vem ao caso dar opinião sobre o sistema político do governo cubano. O importante é termos a percepção de que nossa política é de cooperação.
Agência Brasil – O presidente Lula poderá interceder junto ao governo cubano para a libertação de presos políticos?
Celso Amorim - Isso aí é uma decisão dele e eu não posso falar.