Coluna da Ouvidoria – Matar o mensageiro

10/09/2012 - 19h00

Brasília – Antigamente, ser mensageiro para entregar recados aos adversários numa guerra era uma ocupação perigosa. Quando o portador do recado apresentava uma proposta de trégua ou rendição inaceitável ao outro lado, este, às vezes, dava a resposta matando o mensageiro, um claro sinal da rejeição do acordo proposto.

Os tempos mudaram e os meios de comunicação, também. Mas a ocupação de mensageiro de recados ainda oferece seus perigos. Nas negociações recentes entre representantes do governo federal e dos sindicatos para por fim às greves de várias categorias de servidores públicos federais, a imprensa tem sido utilizada pelos dois lados para passar seus recados. Nada de anormal nisso, pois os dois também têm consciência da importância de mobilizar suas próprias fileiras e a opinião pública a seu favor. Para o mensageiro, porém, embora não corra o risco mortal de antigamente, as batalhas travadas por meio da imprensa trazem o perigo de danos éticos, ainda mais quando a interferência é flagrada.

Uma das armas não letais de que o Estado pode dispor para controlar a imprensa é a censura, e foi precisamente um suposto ato de censura praticado por representantes do governo federal que levou dois leitores a reclamar das alterações feitas em uma matéria publicada pela Agência Brasil no dia 2 de agosto.

A matéria, que tinha dois secretários do Ministério de Educação (MEC) como fontes, abordou a posição da pasta sobre as perspectivas para as negociações com os sindicatos dos professores das universidades e institutos técnicos federais. Na véspera (1º de agosto), o acordo proposto pelo MEC tinha sido aceito por um dos sindicatos, que representa aproximadamente 15% da categoria dos docentes.

Na versão original, o título da matéria era: “MEC diz não ter plano B em caso de continuidade da greve dos professores” e o texto incluía a seguinte paráfrase de uma afirmação atribuída às fontes: “Amaro Lins [o secretário de Educação Superior] e o secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, Marco Antônio de Oliveira, disseram que o governo não tem um ‘plano B’ na hipótese de os docentes continuarem em greve após a assinatura do acordo com o Proifes, e que, neste caso, caberia ao Ministério do Planejamento e à AGU (Advocacia-Geral da União) decidir que medidas tomar”.

Uma hora depois da publicação, a matéria foi alterada. O título foi substituído por: “MEC acredita no fim da greve nas universidades e diz que aguarda desdobramentos dos fatos”, a afirmação citada acima foi eliminada, outras afirmações foram acrescentadas e uma nota foi colocada no final da matéria acusando a correção, em decorrência de um erro de interpretação, sem mais detalhes. No dia seguinte (3 de agosto), houve outra alteração, reintroduzindo informações que tinham sido eliminadas na primeira revisão sobre o autor de uma das falas, e uma errata foi publicada apontando as alterações.

Tudo indica que a matéria foi uma entrevista exclusiva dada à Agência Brasil. As mesmas informações não foram relatadas por outros jornalistas e só aparecem em sites que reproduziram a reportagem da ABr. Portanto, faltam fontes independentes para checar as explicações sobre as alterações. Mesmo assim, apesar de qualquer erro de interpretação que possa ter acontecido na reportagem – a atribuição incorreta de uma fala, por exemplo – está patente que as alterações feitas na matéria refletem mais uma mudança de ênfase do que a correção de informações erradas. Esta foi claramente a intenção da mudança no título – uma área onde os editores da ABr são geralmente muito ciosos da sua liberdade de expressão – e das falas acrescentadas nas revisões. Quanto à afirmação parafraseada que foi eliminada do texto, observamos apenas que, mesmo que houvesse algum erro na atribuição, é difícil conceber que a referência ao Ministério de Planejamento e à AGU tenha aparecido do nada quando a matéria foi redigida.

No mesmo dia da publicação das duas primeiras versões, as alterações chamaram a atenção dos responsáveis pelo site do UOL Educação, que colocaram um post com o seguinte título: “Após dizer que MEC não tem plano B para greve, agência muda texto e omite informação”. O post identificou a ABr como “a agência de notícias do governo federal” e afirmou que: “De acordo com a Agência Brasil, a mudança foi feita após questionamento da assessoria do ministério” (uma informação que não aparecia nas explicações publicadas pela ABr).

O leitor Wákila Mesquita, do Distrito Federal, viu o post e mandou uma reclamação à Ouvidoria no mesmo dia (2 de agosto): “De acordo com o site UOL, no link abaixo, a Agência Brasil teria mudado uma notícia por determinação do MEC. O governo pode interferir nos veículos da EBC, não há autonomia? Esses veículos são do governo ou são públicos”? Três dias depois outro leitor, Georges Bourdoukan Junior, de Santos (SP), enviou sua crítica, comentando, entre outras coisas: “Esta agência... se sujeita a remover uma nota passada, em um típico caso de censura”.

A Diretoria de Jornalismo respondeu aos leitores, reconhecendo o envolvimento do MEC – e assim confirmando a informação divulgada no site do UOL – porém defendendo esta participação como legítima: “Agradecemos a sua participação e reafirmamos que a Agência Brasil é uma agência pública notícias, conforme missão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com autonomia editorial. O que ocorreu é que foi detectado um erro na matéria e, assim como qualquer cidadão, que pode e deve nos alertar de um erro, a assessoria do Ministério da Educação tomou a iniciativa em relação.”

Como se observou acima, as alterações foram além de meras correções de informações erradas. Portanto, as acusações de censura e interferência deveriam ser levadas a sério. Estritamente falando, não houve censura. A matéria não foi submetida à aprovação prévia do governo e, depois de publicada, não houve ameaça de sanções legais, caso não fossem removidos conteúdos considerados ofensivos. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão e, desde 2009, quando o Supremo Tribunal Federal revogou a Lei de Imprensa, que vigorou no Brasil de 1967 a 2009, não existem, no país, diretrizes que definam o que é censura, com exceção das faixas indicativas para filmes e programas de televisão e de decisões pontuais da Justiça baseadas na coibição de crimes de calúnia.

No entanto, na sua Norma de Jornalismo, lançada em junho deste ano, a EBC revela uma visão mais ampla que ajuda a balizar esta questão: “A busca da verdade, da precisão e da clareza, o respeito aos fatos... é fundamento da credibilidade, patrimônio maior da imprensa livre e da comunicação democrática.… Sua construção, manutenção e defesa são sagradas e nada, absolutamente nada, justifica expor esse objetivo a qualquer tipo de risco. Zelar pela credibilidade é tarefa de todos os que trabalham na EBC, que a ela se vinculam por outros meios ou que fornecem conteúdos à empresa”. Sobre as assessorias de imprensa, a Norma reza: “As assessorias de imprensa devem ser limitadas à condição de fontes de informação. É papel dos jornalistas da EBC enriquecer as pautas sugeridas por elas, retirando o caráter comercial ou unilateral da sugestão e perceber as tentativas de valorização ou supressão de informações”.

Quanto à questão levantada pelo leitor – “empresa pública ou empresa do governo federal” –, tanto a lei que constituiu a EBC quanto o decreto que aprovou seu Estatuto Social determinam que um dos princípios a ser observado no exercício da sua prestação de serviços é: “autonomia em relação ao governo federal para definir produção, programação e distribuir conteúdo no sistema público de radiodifusão”. Ao mesmo tempo, tais documentos atribuem à EBC, para realização de sua finalidade, a competência de “prestar serviços no campo de radiodifusão, comunicação e serviços conexos, inclusive para a transmissão de atos e matérias do governo federal”.

Normalmente, há uma divisão clara para evitar contradições nesta relação: os serviços prestados contratualmente ao governo federal competem a uma área específica, a Diretoria de Captação e Serviços. No entanto, a linha, às vezes, se confunde quando as fontes consultadas na produção de matérias por outras áreas são autoridades federais. Esta parece ser a situação da matéria sobre o MEC. É bom frisar que esta é uma relação que não se restringe à EBC na utilização das fontes oficiais. Esta relação existe sempre entre os veículos da mídia e suas fontes. A situação se agrava, porém, quando a relação é privilegiada, como acontece nas entrevistas exclusivas. A manutenção deste tipo de relação frequentemente exige um nível de confiança mútua que pode ofuscar as linhas que definem os procedimentos profissionais recomendados.

No caso em questão, pode-se imaginar que, quando leram a matéria na versão original, os assessores do MEC – e possivelmente alguns integrantes do alto escalão do governo, dentro e fora do ministério – acharam a mensagem excessivamente “linha dura” e, ao mesmo tempo, uma admissão de que o MEC estaria se colocando fora das negociações com os grevistas por não ter um plano alternativo. Com a eliminação da referência ao Ministério do Planejamento e à AGU no trecho que foi cortado, a mensagem foi abrandada, pois estes órgãos têm o poder de aplicar sanções contra os grevistas: corte de ponto e ações na Justiça para declarar a greve ilegal e multar os sindicatos. Do mesmo modo, as outras alterações puseram mais ênfase na confiança de que o exemplo do Proifes, ao aceitar o acordo proposto, seria seguido pelos outros sindicatos. No spin (efeito) dado na versão alterada da matéria, o MEC passou uma mensagem na qual o ministério continuava no centro da disputa, com credenciais válidas para a manutenção do dialogo com os sindicatos, sem abdicar de seus poderes para outros órgãos do governo.

Convém lembrar o que foi observado no começo desta Coluna sobre a utilização da mídia para passar mensagens. Para as autoridades do governo, a mídia serve como meio de reforçar suas posições em relação às próprias fileiras e à opinião pública, além de mandar recados aos seus adversários fora e dentro do governo. Quanto a estes últimos, do ponto de vista das interferências, não deixa de ser relevante que estudos constatam que a terceira categoria mais frequente das proibições da censura na década dos 70 eram os problemas internos do regime, depois das atividades repressivas do Estado e das atividades da oposição.

Na realidade, em bases fatuais, praticamente nada mudou nas versões das matérias. A falta de um plano alternativo foi constatada em todas as versões, bem como a legitimidade com a qual o ministério via o acordo com o Proifes, a confiança num breve fim da greve e a premência do governo em enviar sua proposta orçamentária ao Congresso.

A título de sugestões, recomendaríamos: que a ABr identifique as matérias baseadas em entrevistas exclusivas; que as alterações que não forem correções de fatos errados nas matérias sejam identificadas de uma forma diferente da publicação de uma errata.

Como diz o ditado: “À mulher de César não basta ser honesta, tem também que parecer honesta”.

Até a próxima semana.