Brasília - Quem acompanhou a cobertura da Agência Brasil na semana passada sobre a decisão do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, de expulsar três funcionários da Embaixada dos Estados Unidos em Caracas foi informado da acusação de que eles teriam participado de reuniões com a oposição no país para elaborar “planos de sabotagem energética e econômica”. Maduro anunciou a decisão no dia 30 de setembro num discurso transmitido à nação pela televisão: “Investigamos durante vários meses e detectamos que um grupo de funcionários da Embaixada dos Estados Unidos se reuniu com a extrema direita, para financiá-lo e apoiá-lo em ações de sabotagem elétrica e na área econômica do país. Tenho provas em minhas mãos” [1].
Durante o discurso, o presidente mostrou um vídeo no qual os três funcionários foram flagrados na saída do local onde uma dessas reuniões teria acontecido. A embaixada e o Ministério de Relações Exteriores dos Estados Unidos negaram as acusações e o governo norte-americano retaliou com a expulsão de três diplomatas venezuelanos do território norte-americano. Isso foi relatado na cobertura.
Este não é o primeiro incidente de expulsões diplomáticas envolvendo os dois países nos últimos anos. Se o objetivo da ABr foi simplesmente comunicar mais uma etapa da briga que surgiu entre os dois países a partir da ascensão ao poder do ex-presidente Hugo Chávez em 1999 ou mais um capítulo da campanha de propaganda bolivariana contra o imperialismo ianque, não há o que reclamar. A concentração de conteúdos baseados nas declarações oficiais das duas partes tende a dar essa impressão. Mas se houve interesse em esclarecer as razões do episódio mais recente, convém avaliar as informações apresentadas na cobertura do incidente e, de modo geral, da situação na Venezuela depois da morte do ex-presidente em março deste ano.
A ouvidoria pretende tratar dessa questão em duas colunas. A desta semana, sobre as condições vivenciadas pela sociedade venezuelana, sobretudo nas esferas econômicas e políticas. A próxima, sobre a atuação dos diplomatas norte-americanos naquele país. Nas três matérias que a ABr publicou sobre a expulsão e suas repercussões [2], o leitor tomou conhecimento de que “no começo de setembro, o país sofreu um apagão elétrico que atingiu 60% do território venezuelano. Dias depois, o governo anunciou ter provas de que o sistema fora sabotado. Segundo Maduro, "pela direita do país”. Quase como se fosse uma reflexão secundária, a reportagem acrescenta: “Também há problemas inflacionários, com o câmbio paralelo que pressiona o bolívar, moeda venezuelana. Além da alta inflação e uma crise de abastecimento de produtos alimentícios e de higiene”. Pelo contexto da notícia, fica em aberto a possibilidade de esses problemas também terem ligações com os atos de sabotagem denunciados pelo presidente.
Desde sua posse em abril, o presidente Maduro tem acusado seus adversários de praticarem inúmeros atos de sabotagem contra a economia venezuelana. Mesmo assim, não há quase ninguém na Venezuela que acredite nessa explicação. Em pergunta aberta incluída numa enquete realizada em julho pelo Instituto Venezolano de Análisis de Datos (Ivad), 3,2% dos entrevistados atribuíram a los saboteadores a principal responsabilidade pela crise de abastecimento elétrico do país, enquanto as respostas associadas à atuação do governo (governo nacional, ministro de energia, empresas elétricas, falta de investimento, falta de manutenção e má administração) somaram 73,1% [3]. Quando a ABr dá destaque às denuncias, mesmo com as ressalvas costumeiras (“segundo Maduro”, etc.), está colocando a carroça na frente dos bois.
Não é só a opinião pública e a oposição que responsabilizam o governo pelos problemas da economia. Entre abril e junho deste ano uma equipe de assessores governamentais liderada por Felipe Pérez Martí, ex-ministro de Planejamento e Desenvolvimento no governo Chavez, publicou várias versões de um documento cujo título lembra o conhecido panfleto político do revolucionário russo, Vladimir Lenin: “Que hacer?”. No documento esse grupo de apoiadores da revolução bolivariana critica o crescimento do tamanho do Estado centralizado, o gasto social sem um aumento correspondente na produção e a emissão de papel moeda pelo Banco Central, dentre outras políticas prejudiciais ao aprofundamento da revolução socialista, e propõe soluções mais condizentes com as realidades econômicas do país e com os princípios comunitários e cooperativistas que inspiraram a revolução. Em um dos trechos do documento, eles observam que “estamos perdendo por 2 gols a 3”: enquanto o ataque do governo marcou 2 gols (um político, o outro social), a defesa econômica marcou 3 gols contra. E alertam da possibilidade de uma explosão social que pode beneficiar a ofensiva oposicionista que começou com força depois das eleições de abril [4].
Na cobertura sobre a Venezuela nos últimos 12 meses, a ABr publicou poucas matérias que dimensionem a abrangência desses problemas e ajudem o público brasileiro a compreender as origens das dificuldades que o país enfrenta. De um total de 713 matérias em que a Venezuela é citada neste período, foram encontradas apenas duas nas quais especialistas brasileiros (dois professores do Departamento de Relações Exteriores da Universidade de Brasília, UnB, e o diretor executivo do Centro Latino-Americano de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas/FGV) analisaram o assunto [5]. “Em compensação, houve espaço para uma matéria publicada em julho, na qual o ministro venezuelano das Relações Exteriores procurou explicar como “conjuntural” o desabastecimento de alguns produtos alimentícios:” 'É uma consequência do antes e depois da morte do presidente Hugo Chávez ... A raiz da sua morte provocou uma situação de expectativa em todos os atores econômicos. Todo mundo pôs o pé no freio nos investimentos e decisões' ” [6].
Numa economia com tantas mazelas, inclusive um mercado de câmbio paralelo em que o dólar norte-americano vale acima de quatro vezes a taxa oficial, não é surpreendente que a Venezuela é um dos países com os maiores índices de corrupção no mundo atualmente. De acordo com o ranking mais recente (2012) da Transparência Internacional, Venezuela ocupa a 165ª posição entre 176 países no Índice de Percepção de Corrupção, empatada com o Haiti, Burundi e Chade [7]. Quando a ABr divulgou esse ranking, no qual o Brasil ficou em 69º lugar, em dezembro do ano passado, a situação da Venezuela foi omitida: “Nas Américas e no Caribe, as posições mais negativas são as do Haiti, em 165º lugar, e do Paraguai, em 150º” [8]. Nesse ponto, também a cobertura da ABr destaca as denúncias do presidente contra a corrupção, não as causas e as consequências.
Uma das explicações para as dificuldades da ABr tem a ver com as agências de notícias, das quais a agência depende em grande parte para a cobertura. Nas 713 matérias publicadas nos últimos 12 meses, as principais agências consultadas foram: a Telesur (94 vezes), a Agencia Venezolana de Notícias/AVN (77), a Lusa (72), a BBC (36), a Prensa Latina (23), a Telam (15) e a Venezolana de Televisión/VTV (dez). Deste total de 327 citações, 204 (62%) provêm de instituições vinculadas parcial ou totalmente ao governo venezuelano (Telesur, AVN e VTV) ou ao governo do seu aliado Cuba (Prensa Latina).
A ABr tem uma correspondente em Bogotá, Colômbia, desde fevereiro deste ano, mas apenas sete das matérias que ela escreveu sobre a Venezuela foram produzidas na Venezuela, para onde ela viajou duas vezes, a primeira em março, logo depois da morte de Chávez, e a segunda em abril, durante e depois da eleição presidencial vencida por Maduro. Apesar do enfoque principal serem os discursos da situação e da oposição, em uma das matérias ela apresenta informações colhidas de outras fontes – um cientista político e um aposentado – que dão uma visão mais balizada sobre como o povo venezuelano percebe a situação do país [9], o que mostra a importância de ter repórteres que fazem seu trabalho no local das notícias.
Nas matérias sobre a expulsão dos diplomatas norte-americanos, a ABr deixou de mencionar que há eleições municipais marcadas para o dia 8 de dezembro na Venezuela. Nas eleições presidenciais de outubro de 2012, Chávez venceu a oposição por 10 pontos percentuais (54,8% contra 44,6%). Nas eleições de abril deste ano, a margem de vitória de Maduro, foi menos de 2 pontos percentuais (50,6% contra 49,1%). Partindo da hipótese de que o presidente venezuelano esteja disposto a não poupar esforços para garantir a vitória dos candidatos que o apoiam, os diplomatas norte-americanos lhe deram uma carta na manga, para jogar no momento que julgou oportuno. Mas este será o tema da próxima coluna.
Boa leitura!
[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-30/venezuela-maduro-ordena-expulsao-de-diplomatas-americanos
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-30/venezuela-maduro-ordena-expulsao-de-diplomatas-americanos
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-10-01/expulsao-de-diplomatas-estados-unidos-estudam-medidas-de-reciprocidade-contra-venezuela
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-10-02/venezuela-critica-decisao-dos-estados-unidos-de-retribuir-expulsao-de-diplomatas
[3] http://fotos2013.cloud.noticias24.com/Estudio%20Nacional%200713.pdf
[4] http://www.aporrea.org/ideologia/a167599.html
[5] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-12-15/ausencia-de-chavez-pode-levar-instabilidade-interna-na-venezuela-dizem-especialistas
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-04-16/maduro-podera-enfrentar-dificuldades-para-implementar-reformas-na-venezuela-avalia-diretor-da-fgv
[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-17/desabastecimento-de-alguns-produtos-alimenticios-na-venezuela-e-conjuntural-diz-chanceler
[7] http://www.transparency.org/cpi2012/in_detail
[8] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-12-05/brasil-ocupa-69%C2%AA-posicao-em-ranking-de-corrupcao-mostra-estudo
[9] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-04-15/maduro-e-proclamado-presidente-mas-opositores-protestam-contra-resultado