Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo - A Comissão da Verdade Nacional (CNV) e a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) receberam na tarde de hoje (19), em uma cerimônia na Alesp, os processos envolvendo o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, movidos pelas famílias Teles e Merlino. As duas famílias também entregaram à CNV vários pedidos, entre eles, solicitando que o coronel Ustra seja mais uma vez ouvido pela comissão e, desta vez, declarado como torturador e com a presença das famílias e vítimas da ditadura militar. “É inaceitável a maneira como foi feita a primeira audiência com o coronel Ustra. Nenhuma pessoa que foi torturada por ele foi convidada, com exceção do vereador de São Paulo Gilberto Natalini”, disse Angela Mendes de Almeida, que foi companheira de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto durante a ditadura militar.
Ustra comandou o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), um dos maiores centros de repressão durante a ditadura militar, que funcionava próximo ao Parque Ibirapuera, na capital paulista, entre 29 de setembro de 1970 e 23 de janeiro de 1974. Nesse período, apontam as comissões, mais de 502 casos de tortura e 40 assassinatos ocorreram no DOI-Codi. Angela e os demais parentes de Merlino também entregaram à coordenadora da CNV, Rosa Cardoso, uma carta com solicitações, entre elas o depoimento do delegado de polícia Dirceu Gravina, ainda na ativa, denunciado pelos parentes como torturador. Além disso, eles reivindicam que a comissão investiguem quem foram os torturadores de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, os agentes que o prenderam e os médicos que o atenderam no Hospital Militar, após ele ter sido torturado por 24 horas em um pau de arara.
Em maio deste ano, em depoimento à CNV, Ustra negou a acusação do Ministério Público Federal de ter ocultado cadáveres e cometido assassinato, tortura e sequestro. “A importância [de entregar cópias dos processos para as duas comissões] é que a Comissão Nacional da Verdade comece a chamar os torturadores [para depoimento] e também as vítimas dos torturadores e não dar uma plateia para que esses torturadores possam bater na mesa e dizer que nunca torturaram ninguém”, disse Angela, em entrevista à Agência Brasil.
Em agosto de 2012, Ustra foi condenado como torturador em segunda instância pela Justiça paulista, em ação movida pela família Teles. Os autores da ação, Maria Amélia Teles, o marido César Augusto Teles e a irmã Crimeia de Almeida, foram presos em 1972 e torturados no DOI-Codi. Os filhos do casal, Janaína e Édson, à época com 5 e 4 anos, respectivamente, também ficaram em poder dos militares.
“Tive toda a família sequestrada e torturada. Minha irmã, grávida de oito meses, foi torturada. Meu sobrinho nasceu já sob torturas. E tudo sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra”, disse Maria Amélia Teles, mais conhecida como Amelinha. “Entregamos os autos do processo, pelo menos as peças principais, para que haja uma reconvocação no caso Ustra na Comissão Nacional da Verdade e para que ele seja convocado na condição de torturador condenado e não de suspeito de tortura. Ele já foi condenado [como torturador] na primeira e na segunda instâncias”, acrescentou ela. “Quero que ele [Ustra] esclareça os crimes e diga onde cada desaparecido está; que ele esclareça os crimes de tortura, assassinato e de estupro”, disse Amelinha.
Na ação movida pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, o coronel Ustra foi condenado, em primeira instância, a indenizar a família em R$ 100 mil por ter participado e comandado sessões de tortura que mataram o jornalista em julho de 1971, durante a ditadura militar. Merlino integrou o Partido Operário Comunista (POC), foi preso em 15 de julho de 1971 e levado para a sede do DOI-Codi, onde foi torturado e morto.
“O primeiro processo, da família Teles, proposto em 2005, está mais avançado. Foi julgado procedente na primeira instância, o Ustra recorreu. Respondemos a esse recurso e isso foi julgado no Tribunal de Justiça (TJ), em segunda instância, e manteve a sentença, ou seja, fomos vitoriosos na primeira e na segunda instâncias. Ele entrou com recurso para os tribunais superiores em Brasília e está pendente ainda aqui, no TJ, a análise de admissibilidade, se o TJ aceita ou não esses recursos para Brasília. Em relação ao processo da família Merlino, teve sentença na primeira instância reconhecendo os atos de tortura. Ele [Ustra] recorreu e aguarda julgamento da apelação no TJ”, explicou o advogado Aníbal Castro de Souza, que defende as duas famílias.
A coordenadora da CNV, Rosa Cardoso, que deve deixar o cargo esta semana (a coordenação deverá ser assumida pelo advogado criminalista José Carlos Dias), disse que pretende atender ao pedido feito pelas famílias para que Ustra seja ouvido novamente pela CNV. “Acho que são [críticas] justas e são fruto de uma falta de experiência anterior da comissão. Foi uma primeira grande audiência pública, com um grande violador. Já havia provas e depoimentos anteriores prestados inclusive em âmbito processual [contra Ustra) e seria muito útil que essas pessoas [vítimas e parentes de presos políticos] tivessem sido chamadas porque criariam maiores dificuldades de um discurso como o que o Ustra fez na comissão”, disse. “A lei que criou a comissão nos autoriza a ouvir e reinquirir [o coronel]”, ressaltou Rosa Cardoso.
Segundo ela, a audiência deve ser organizada ouvindo primeiro os parentes de mortos e desaparecidos e as vítimas. E só depois o coronel Ustra. Rosa Cardoso declarou que a proposta deverá passar pelo colegiado da comissão e que a data não pode ser anunciada sem a aprovação e sem combinar as agendas da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão de São Paulo. Na nova audiência, disse a coordenadora, deve ser posto em relevo o fato de Ustra já ter sido condenado pela Justiça. No entanto, ressaltou Rosa Cardoso, o coronel tem o direito de permanecer calado caso seja aprovado seu novo depoimento à comissão.
O advogado Paulo Alves Esteves, que defende o coronel Ustra, declarou em entrevista à Agência Brasil que, caso seja intimado, seu cliente comparecerá novamente à CNV. “Se ele for intimado, ele vai”, disse. Segundo Esteves, apesar de ter a prerrogativa de se manter em silêncio caso seja intimado pela comissão, Ustra deve, sim, falar, como já o fez em maio. “Ele vai falar outra vez. Da outra vez, ele falou e prestou depoimento”. O advogado também informou que recorreu de ambos os processos, tanto da família Merlino como da família Teles. “Ele [Ustra] sempre negou a participação em qualquer fato”, ressaltou.
A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), autora de um projeto de lei que propõe alterar a Lei de Anistia, excluindo do rol de anistiados os torturadores ou agentes da repressão, como pedem as comissões da Verdade e as famílias dos mortos, torturados ou desaparecidos políticos, disse, durante a audiência pública de hoje, acreditar que a lei possa ser revista, principalmente se houver uma pressão popular. Segundo ela, sua proposta de alterar a Lei de Anistia foi rejeitada na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, mas se encontra atualmente na Comissão de Constituição e Justiça, onde também tem um parecer pela rejeição.
A deputada disse à Agência Brasil que a ideia é aguardar um pouco para que o projeto de lei não seja derrotado. “Vamos deixar crescer essa pressão externa nos comitês e comissões da Verdade espalhados pelo país, que querem que a lei seja reinterpretada, porque senão não há como processar e julgar os comprovadamente criminosos de violações de direitos humanos. É preciso uma pressão [popular] que seja forte sobre o Congresso para que eles [parlamentares] não tenham coragem de manter esta Lei [de Anistia] que é uma vergonha mundial”, declarou.
Edição: Aécio Amado
Todo o conteúdo deste site está publicado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil. É necessário apenas dar crédito à Agência Brasil