Brasília - A Agência Brasil publicou, no dia 11, duas matérias sobre as eleições primárias realizadas na Argentina para escolher os candidatos para as eleições legislativas em outubro [1]. O assunto nos interessa por várias razões. Por ser o maior parceiro comercial do Brasil no continente, os futuros rumos políticos da Argentina afetam o destino do Brasil. Além disso, o funcionamento das instituições políticas argentinas oferece pontos de comparação que podem ser aproveitados nas discussões sobre reforma política no Brasil.
Na cobertura, a ABr apontou as questões principais que só serão decididas em outubro: se o partido da presidenta Cristina Kirchner (Frente para La Victoria - FPV) e os partidos aliados manterão sua maioria na Câmara dos Deputados e no Senado; se esta maioria atingirá os dois terços necessários para mudar a Constituição e assim permitir à presidenta tentar um terceiro mandato; e que lado sairá vitorioso no pleito mais visado, entre os candidatos a deputado federal da província de Buenos Aires, cujo resultado é visto como uma prévia da disputa entre o governo e a oposição nas eleições presidenciais de 2015. Contudo, salvo uma indicação das tendências registradas por pesquisas de opinião e analistas políticos antes das eleições e uma declaração feita pelo ministro do Interior e Transporte, enquanto os votos ainda estavam sendo apurados, de que a FPV foi o partido mais votado em todas as regiões no país, os leitores ficaram sem saber os resultados das eleições realizadas no domingo.
Na avaliação quase unânime das notícias consultadas pela ouvidoria em outros veículos da imprensa, do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos, esses resultados foram desfavoráveis ao governo da presidenta Cristina Kirchner, como foi previsto pelas pesquisas de opinião e analistas políticos. Com 97,57% das mesas escrutinadas, o partido da presidenta tinha conquistado 26,31% dos votos dados aos candidatos à composição das chapas que pretendem disputar as vagas na Câmara dos Deputados em outubro [2]. Embora esse percentual seja o maior dentre todos os partidos que participaram nas eleições primárias, ele corresponde à metade do percentual de votos recebidos por candidatos da FPV à Câmara nas eleições de 2011.
Além disso, os candidatos dos partidos da oposição foram mais votados que os candidatos da FPV em 15 das 24 províncias argentinas e o candidato da oposição na província de Buenos Aires ganhou do seu rival da FPV por uma margem superior a 5 pontos percentuais. Mesmo assim, devido ao número relativamente pequeno de cadeiras ocupadas pela FPV que estarão em disputa em outubro e à fragmentação existente entre os partidos da oposição, as chances do governo manter sua maioria nas eleições de outubro são consideradas boas, especialmente na Câmara.
Para o leitor mais atento, a primeira coisa a ser questionada seria em que sentido as eleições primárias na Argentina funcionam como primárias? Se o objetivo de uma eleição primária é escolher entre os candidatos para compor as chapas, por que tratar os resultados como se fosse uma competição entre os partidos? Uma das matérias publicadas pela ABr dá uma pista ao observar que as “primárias dos partidos políticos na Argentina são simultâneas e obrigatórias. A ideia é permitir ao cidadão comum maior participação no processo de escolha de seus representantes. No entanto, a maioria dos partidos e das coligações partidárias apresentou chapa única”.
Chapa única é equivalente à lista fechada. Portanto, para a maioria dos eleitores argentinos, as eleições primárias na verdade funcionam como prévias das eleições legislativas. A ABr deixou de mencionar que além de “simultâneas” e “obrigatórias”, as primárias argentinas são “abertas”. A sigla Paso – Elecciones Primarias, Abiertas, Simultáneas y Obligatorias – é utilizada para se referir a estas eleições na Argentina [3]. Por serem eleições abertas, o eleitor argentino está livre para dar seu voto a qualquer candidato, independentemente do partido.
Essa liberdade, junto com o fato de a maioria dos partidos apresentarem listas fechadas, é o que transforma as primárias argentinas em prévias. As regras são determinantes. No caso da Argentina, as listas fechadas reforçam a concentração do poder nas mãos dos caciques provinciais: “As regras eleitorais argentinas colocam a decisão da reeleição do parlamentar nas mãos do governador da província ou dos chefes partidários locais mais do que nas dos eleitores do distrito” [4]. A principal motivação do deputado é cultivar o trabalho partidário (pois é esse que garante a boa posição da lista na eleição seguinte) e o parlamentar tem muito pouco interesse em prestar contas de seu mandato à população em geral. Consequentemente, a Câmara de Deputados na Argentina tem a menor taxa de reeleição e a menor média de longevidade da carreira parlamentar em todo o continente [5]. A introdução das primárias na Argentina em 2009, na maneira como são realizadas, não alterou essa situação.
Em outros países prevalecem outras regras. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde as primárias não são nem simultâneas nem obrigatórias, há uma grande variedade de regras, de acordo com o estado. Em alguns estados, o eleitor tem que indicar uma preferência partidária no seu cadastro na Justiça Eleitoral para participar nas primárias daquele partido. Em outros, os eleitores cadastrados como independentes podem participar. E ainda há alguns onde os eleitores podem votar na primária que quiserem, independentemente da sua preferência partidária. Essa variante aberta, que é a mais parecida com o sistema argentino, pode ser interessante para um partido quando ela possibilitar a escolha de um candidato com mais capacidade de atrair os votos de eleitores de outros partidos, mas ela também apresenta o risco de dar um tiro no pé, quando os eleitores de um partido resolverem votar no candidato mais fraco de um partido rival para melhorar as chances do candidato do seu próprio partido nas eleições gerais [6].
Depois que os protestos de junho colocaram a reforma política entre as questões prioritárias para o governo brasileiro, muitas opiniões foram expressas a favor e contra os vários modos de efetuar mudanças. Muitas declarações foram emitidas sobre a viabilidade de aprovar a reforma em tempo para as próximas eleições e muitas avaliações foram feitas sobre a receptividade ou resistência dos parlamentares às mudanças nas regras do jogo. Mas relativamente pouco foi dito sobre as dificuldades impostas pela complexidade das próprias regras e dos procedimentos disponíveis para alterá-las.
Considere, por exemplo, um dos cinco pontos da reforma política que a presidenta Dilma Rousseff propôs no começo de julho para o povo decidir por meio de um plebiscito: se, nas eleições para deputado e vereador, o atual sistema proporcional de lista aberta deveria ser mantido ou substituído por outro sistema, que poderia incluir eleições distritais ou uma mistura de eleições distritais e proporcionais e listas fechadas, com os nomes e a ordem determinados pelos partidos, ou flexíveis, dando ao eleitor a opção de indicar o nome de um candidato [7]. Entre essas regras, várias combinações são possíveis, mas mesmo que a escolha seja simplificada pelo tratamento separado de alguns dos componentes, às vezes os dilemas são inevitáveis.
Suponhamos que a escolha para o cidadão – se for por plebiscito ou referendo – ou para o parlamentar – se for por projeto de lei – seja entre lista aberta, lista fechada e lista flexível e cada opção receba um terço dos votos. Qual opção deveria ser aprovada? Nenhuma delas recebeu o apoio da maioria, mas dois terços votaram a favor de trocar o sistema atual de lista aberta. Por outro lado, dois terços votaram a favor de opções que permitem ao eleitor escolher seu candidato. O resultado é indefinido. Há ainda a proposta da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades de realizar as eleições proporcionais em dois turnos (em lista fechada no primeiro turno para determinar quantas vagas cada legenda terá direito e em lista aberta no segundo para escolher o candidato que vai preencher cada vaga). Essa proposta deveria ser incluída como uma quarta opção ou tratada separadamente? Como nas pesquisas de opinião e de preferência eleitoral, a resposta depende da maneira como a pergunta é formulada, e, diante do número proibitivo de combinações possíveis, a apresentação das opções de modo a dar um resultado que os eleitores acatem como legítimo requer sondagens e campanhas preliminares que definam e reforcem as opções que serão mais atraentes para o público.
As sondagens e as campanhas já estão em andamento [7] e o cidadão tem a chance de participar da elaboração da pauta, procurando os sites das entidades citadas nas matérias. Esta coluna procurou apenas ressaltar a importância das regras, diante do número de opções existentes. No caso da lista fechada, por exemplo, quem é que vai decidir a composição? Eleições primárias são uma opção, mas, como vimos, também podem funcionar de várias maneiras, com consequências diferentes. As regras, portanto, são determinantes.
Boa leitura!
[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-11/eleicoes-primarias-na-argentina-indicam-mapa-politico-dos-proximos-dois-anos
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-12/argentinos-definem-quem-disputara-eleicoes-ao-senado-e-camara
[2] http://argentina.politicaenelmundo.com/resultados-finales-de-las-elecciones-primaras/
[3] http://www.edemocracia.mendoza.gov.ar/index.php/informacion-general/p-a-s-o/46-ley-de-primarias-abiertas-simultaneas-y-obligatorias-paso1
[4] http://faculty.udesa.edu.ar/tommasi/cedi/dts/dt45.PDF
[5] http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=37327712
[6] http://en.wikipedia.org/wiki/Primary_election
[7] http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/07/entenda-5-temas-sugeridos-por-dilma-para-plebiscito-sobre-reforma-politica.html
[8] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-06/brasileiros-querem-reforma-politica-diz-pesquisa-encomendada-pela-oab
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-07-31/internautas-apresentam-116-propostas-na-discussao-da-reforma-politica-diz-vaccarezza