Fernanda Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – As lembranças do assassinato da jovem estudante de 15 anos Marcela da Silva Xavier, morta em junho de 2010, não saem da mente de seus familiares. Muito menos da tia da adolescente, a cabeleireira Adolfa Rodrigues da Silva, de 39 anos, que presenciou o corpo da sobrinha ser incendiado com requintes de crueldade - por meio de um método conhecido como microondas, em que a vítima é queimada dentro de pneus.
“Eu vi ela em chamas. Ele [o assassino] carbonizou o corpo dela, todinho. Já fazia horas que ela estava queimando, estava irreconhecível”, relata.
Adolfa conta que ela e a mãe da adolescente, a doméstica Maria Aparecida da Silva, de 41 anos, procuravam por Marcela, desaparecida há dois dias, quando foram informadas do surgimento de um corpo na represa de Nazaré Paulista. Descobriram, posteriormente, que o corpo não era da garota, mas da advogada Mércia Nakashima, vítima de um outro caso de homicídio, que ficou famoso no país.
O aviso falso, porém, serviu para levar a família da adolescente desaparecida à estrada que liga Nazaré Paulista, no interior de São Paulo, a Guarulhos. “Pegamos o carro e fomos na estrada que vai até essa represa, quando, de longe, avistei um carro da polícia, parado, em posição de blitz. Eu não sei o que deu em mim, que nós paramos. Quando paramos, contamos para o policial o que estava acontecendo, o que estávamos procurando. Começamos a descrever como ela [Marcela] era. Um dos policiais ficou com o olhar estranho. Eu desci do carro e perguntei para ele o que estava acontecendo e ele disse que resguardava um corpo ali. Eu falei que queria ver. Ele falou que eu não iria aguentar, mas eu não quis nem saber”, conta.
Foi assim que Adolfa presenciou uma das cenas mais marcantes de sua vida, a morte cruel de Marcela. Ela enfrentou o pavor para poder, finalmente, ter certeza de que aquele era o corpo da sobrinha. “Eu olhei ela toda queimada, reconheci pela testa, bem quadradinha. A polícia não tinha certeza de que era ela e não deixava pôr a mão no corpo. Aí eu pensei, já que não pode tocar, vou soprar. Eu baixei e soprei na direção do umbigo dela e apareceu nitidamente o piercing que ela usava. E tinha um pedacinho de pele que dava para identificar que era ela”, recorda-se.
Dois anos e meio depois do ocorrido, Adolfa e Maria Aparecida ainda se recuperam do trauma com ajuda do Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), da Secretaria Estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania. Elas participam, há um ano e meio, de sessões com psicólogo, assistente social e ainda conseguem obter informações sobre o andamento do processo criminal, com auxilio de defensores públicos, que fazem plantões de atendimento.
No caso de Marcela, o principal suspeito de ter cometido o crime, Paulo Roberto Brandão Alves, namorado da adolescente na época, ainda não foi julgado pela sua morte. Segundo os parentes da vítima, ele foi preso pelo assassinato de uma outra pessoa, um empresário de Pernambuco. “A gente tem a plena consciência de que mudar a história não vai. Entendemos que ela se foi. A gente só tem que aprender a caminhar e lutar por justiça. Só queremos que ele seja julgado e fique pelo menos um dia [preso] pela morte dela”, disse Adolfa.
A mãe de Marcela também pede justiça para o caso. “Eu fico com raiva, não vou dizer que não. Eu queria que ele estivesse na minha frente para perguntar por que você matou? Uma coisa que eu vou lutar até o fim é que ele pague pelo que fez com ela”, disse.
No Cravi, o atendimento psicológico de Adolfa e Maria Aparecida é feito em conjunto. Elas também participam de encontros promovidos pelo centro, em que conhecem outras famílias vítimas de casos semelhantes. “Cada um conta como superou a sua dor, cada um encontra a sua maneira. Uns adotam uma criança, outros têm filhos, outros fazem o bem para os outros. Não ficam chorando, nem lamentando, nem com ódio no coração”, conta Adolfa.
Para o psicólogo do Cravi Bruno Fedri, que trabalha há 10 anos com vítimas de violência, os grupos psicológicos são etapas importantes do tratamento, principalmente entre mães que perderam filhos de forma violenta. “Geralmente, as mães dizem que dor de mãe é a maior do mundo e só sendo mãe para saber”, conta. Cada grupo recebe de oito a dez pessoas e são promovidos encontros a cada sete dias, com duração de seis meses. “Cada um escuta a história da outro”, explica o psicólogo.
Além de Bruno, mais dois psicólogos atuam no Cravi de São Paulo. Ele conta que atender esse tipo de público é um desafio profissional. “Trabalhar com vítimas de violência é trabalhar no limite da sua atuação. É você realmente ter que refletir sobre o que é possível e o que não é possível fazer a favor da vítima, levando em consideração aquilo que ela sofreu”.
Os psicólogos do Cravi precisam também, muitas vezes, enfrentar crenças e questões religiosas durante os tratamentos. Muitas pessoas atendidas, conta o psicólogo, não querem falar sobre a morte do parente por acreditar que quanto menos se fala sobre a tragédia, melhor. “Assim o espírito descansa”, dizem os pacientes ao psicólogo. “Mas, muitas vezes, é o contrário. A gente verifica que existem pessoas que sentem a necessidade de ter uma pessoa que aguente esse discurso [de lamentação], que ela possa repetir várias vezes”, acrescenta Bruno.
Os resultados obtidos, na maior parte das vezes, são pequenos, mas significativos. “Aqui no Cravi é difícil falar em alta. O que acontece é tão brutal que uma pequena melhora é algo que se comemora muito. Quando a gente vê que uma mãe que está sofrendo pelo filho, de repente, chega e fala “olha pintei minha unha!”. Isso pode ser pequeno para as outras pessoas, mas para a equipe técnica que atende esses casos, saber que uma mãe deixou um pouquinho de lado a memória do filho para pintar a unha dela, para nós, já significa que [o tratamento] está tendo efeito”, disse Fedri.
Apesar de a maioria do público atendido ser composto por familiares de vítimas de homicídios, o Cravi atende também casos de tentativas de homicídio, latrocínio, violência doméstica e violência sexual. De acordo com Cristiane Pereira, coordenadora do centro, são atendidos em média de 100 a 150 pessoas por mês. “Temos uma rede de encaminhamentos. Os casos que não são resultado de natureza grave, encaminhamos para uma rede de parceiros, que conta com 500 instituições cadastradas no estado de São Paulo, como Centros de Referência de Apoio à Mulher, Unidades Básicas de Saúde, Centros de Apoio Psicosociais, além de serviços da Prefeitura e da sociedade civil”, explicou.
O centro, que existe desde 1998, inaugurou no ano passado duas unidades, uma em Campinas e outra em Santos. Segundo a coordenadora do centro, pelo menos duas unidades devem ser abertas até o final deste ano em outros municípios do estado. Há previsão de que sejam instalados Cravis nas cidades de Araçatuba, São José do Rio Preto, Jundiaí, região do ABC paulista e Mogi das Cruzes.
O Cravi de Campinas está localizado na Rua Odete Therezinha Santucci Otaviano, número 92, telefone (19) 3266-1950. Em Santos, está na Rua Dagoberto Gasgon, número 8, telefone (13) 3205-5517. Na capital paulista, o Cravi está dentro do Fórum Criminal da Barra Funda, na Avenida Abraão Ribeiro, 313, telefone (11) 3666-7778.
Edição: Fernando Fraga
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