Alana Gandra
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro - A Comissão Nacional da Verdade (CNV) está promovendo hoje (11), em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio de Janeiro (OAB-RJ), uma sessão solene para tomada de depoimentos de advogados de presos políticos durante a ditadura militar no estado.
A advogada Rosa Cardoso, integrante da CNV, disse à Agência Brasil que os depoimentos serão usados pelo grupo de trabalho da comissão que examina o funcionamento da Justiça Militar, denominado Ditadura e Sistema de Justiça. “Primeiro, eles [relatos] entram nos anexos, porque nós vamos ter um relatório que conta, discursiva e analiticamente, esse período, com as suas instituições, seus diversos momentos e questões. Tem um grupo [de trabalho] também sobre a Justiça Militar e aí, provavelmente, é que entra esse conjunto de advogados”.
Outros grupos paralelos tratam da questão do golpe militar e suas razões, mortes e violações de direitos no campo, vítimas, autoria dos fatos criminosos, locais de repressão oficiais e casas clandestinas de morte e tortura, entre outras.
Rosa Cardoso destacou que os depoimentos dos defensores de perseguidos políticos durante o regime militar poderão, inclusive, servir de “subsídio para contar essa história”. Ela mesma atuou defendendo presos políticos quando trabalhou no escritório do advogado Modesto da Silveira, no Rio de Janeiro e, mais tarde, na equipe do advogado Belisário dos Santos, em São Paulo. “No escritório de Modesto, nós atendíamos massivamente. Os processos eram muito grandes, tinham 100 pessoas. Eram processos com sindicalistas, pegavam sindicatos inteiros”.
Ela explicou que os depoimentos “serão um pouco amostral”, porque não há condições de ouvir relatos de todos os advogados que defenderam perseguidos políticos no Rio de Janeiro e em São Paulo, estados que registraram os maiores números de casos de repressão, no país.
Estão programados depoimentos de sete defensores de perseguidos políticos no Rio. Além de Rosa Cardoso, a lista inclui Alcione Barreto, Manoel Martins, Terezinha Gentile, Dyrce Drach, Eny Moreira, Modesto da Silveira. Todos receberão diplomas, pela sua atuação na defesa dos presos e desaparecidos políticos. José Carlos Tórtima, preso político, dará o seu depoimento “do lado de dentro das barras do tribunal”, conforme manifestou em entrevista à Agência Brasil.
Preso durante um ano e meio, quando cursava os últimos períodos do curso de direito na antiga Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), José Carlos Tórtima presta homenagem ao advogado Wilson Lopes dos Santos, do qual foi cliente. “Ele é o decano dos advogados criminais do Rio de Janeiro. Se estiver vivo, estará com 96 ou 97 anos”, disse Tórtima. No período em que ficou preso, o hoje advogado criminalista Tórtima relatou ter sofrido torturas. “Estou falando com você [repórter] agora porque tenho uma saúde de ferro”, declarou.
Durante a solenidade, o prédio da OAB-RJ, localizado no centro do Rio de Janeiro, receberá o nome de Sobral Pinto, advogado que também se notabilizou pela defesa de perseguidos políticos durante o regime ditatorial. Um dos mais antigos defensores da época, ainda em atividade, é Modesto da Silveira. Para ele, Sobral Pinto é um símbolo muito grande, em favor de todos os advogados que lutaram pelos direitos humanos e na defesa dos direitos políticos, “que foram centenas de milhares”.
Modesto da Silveira disse, ao falar para a Agência Brasil, que tomou a decisão de defender os perseguidos pela ditadura no dia primeiro de abril de 1964, quando os tanques do Exército viraram os canhões para o povo que aguardava, na Cinelândia, um comício de apoio ao então presidente João Goulart, que acabou não ocorrendo. “Por trás, vieram soldados com baionetas afugentando o povo da praça”.
Segundo Modesto, dois homens à paisana atiraram na direção da multidão, atingindo algumas pessoas antes de se refugiarem no Clube Militar, no centro da cidade, próximo da Cinelândia. Ao chegar ao escritório soube que as lideranças pró-Jango Goulart não foram ao comício porque tinham sido presas e levadas para a Delegacia de Ordem Social e Política (Dops), “que era a delegacia de repressão a presos políticos”. Modesto se dirigiu ao Dops e lá encontrou Sobral Pinto, na época advogado do governador do estado. Os dois advogados não tiveram autorização para entrar no órgão, mas providenciaram um pedido de habeas corpus em favor dos presos.
De acordo com Modesto da Silveira, a sua luta contra o autoritarismo não acabou em 1985, com o fim da ditadura, “porque as sequelas da ditadura continuaram e continuam até hoje. Assim, eu continuo dando orientação e lutando contra a violação dos direitos humanos em todos os níveis”. Os próprios advogados que defendiam esses perseguidos políticos foram sequestrados, a começar por Sobral Pinto, quando se dirigia de Brasília para Goiânia para paraninfar uma turma de formandos em advocacia.
“Logo foram outros”, lembrou, citando Evaristo de Moraes, Augusto Sussekind, Heleno Fragoso, Vivaldo Vasconcelos, George Tavares, entre outros. O sequestro dos defensores funcionava, segundo Modesto, como “uma forma de pressão, nos ameaçando, no sentido de que não defendêssemos mais presos políticos”. Observou que s torturas eram todas psicológicas, “para não deixar marcas”, porque todos os advogados eram conhecidos nacional e internacionalmente. “Se nos matassem, o escândalo seria muito grande”.
Emocionado ao recordar aquela época de luta, Modesto da Silveira fez questão de enfatizar que o Brasil inteiro foi vítima, “porque saímos de um processo evolutivo de democracia, para uma ditadura, tirânica, em que o terrorismo de Estado é que vigorava. O torturador, qualquer que fosse ele, virava dono de sua vida, do seu corpo, da sua vontade. Ele era dono da sua liberdade. Fazia o que quisesse com você. E, se matasse, não tinha problema. Era só jogar o corpo fora, como ocorreu com muita gente”.
Comissão Nacional da Verdade, segundo Modesto, está confirmando o que os advogados dos presos políticos denunciaram à época. Ressaltou que o Rio de Janeiro foi o lugar no Brasil que concentrou o maior número de perseguidos políticos em todo o país. Como os militares não confiavam na Justiça comum, passaram a competência para julgar os detidos para a Justiça Militar. Do total de 21 auditorias militares, sete funcionavam no Rio de Janeiro, o que dá uma ideia do volume de presos políticos no estado, disse.
Edição: Aécio Amado