"A alfabetização não pode ser feita de cima para baixo, como uma dádiva ou uma imposição, mas de dentro para fora, pelo próprio analfabeto e apenas com a colaboração do educador”[1].
Brasília - Com o título Educação no campo terá programa para melhorar qualidade do ensino, a Agência Brasil publicou no dia 18 de março matéria que trata do lançamento do Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo)[2], pela presidenta Dilma Rousseff. O programa tem como objetivo impulsionar a qualidade da educação rural e prevê, entre outras ações, a construção de escolas e a qualificação de professores.
A matéria foi alvo de manifestação do leitor Celso Vallin, professor da Universidade Federal de Lavras (MG), que trabalha com essa temática em projetos de pesquisa e extensão. Ele questionou a informação, ao ressaltar que o programa Escola Ativa já havia produzido e distribuído material didático diferenciado para as escolas do campo, bem como um kit com esqueleto, globo terrestre e outros materiais. Logo, segundo ele, não procede a informação veiculada na matéria, que diz em determinado trecho: “Entre as ações previstas está a produção de material didático específico para as escolas rurais, que abordem os temas da realidade do campo. Até este ano, os estudantes recebiam os mesmos livros que eram enviados ao restante do país”.
Afora essa matéria questionada pelo leitor, a ABr publicou mais quatro matérias sobre o Pronacampo, entre os dias 18 e 26 de março. Todas elas, sem exceção, com conteúdos que citam ou sintetizam pronunciamento oficial. São matérias conhecidas como declaratórias. Ou seja, são frequentemente resumos de notas enviadas pelas assessorias de imprensa à redação. Embora tenha valor informativo, o assunto não é repercutido pelo veículo com representantes de outras áreas e, muitas vezes, nem mesmo com técnicos dos órgãos do governo responsáveis pela implantação do programa que foi anunciado, e a contextualização se restringe à que o órgão quer dar.
Nas matérias declaratórias, a busca de novidade pode levar o repórter a baixar a guarda. O viés a favor da novidade já está presente quando o governo anuncia uma nova medida. O repórter precisa ter cuidado para não exagerar na dose, como neste caso, quando, na matéria citada pelo leitor, o jornalista não se contentou com uma afirmação correta ("Entre as ações previstas está a produção de material didático específico para as escolas rurais, que abordem os temas da realidade do campo."), mas acrescentou uma informação errada tirada de algum lugar, sem apuração ("Até este ano, os estudantes recebiam os mesmos livros que eram enviados ao restante do país").
Antes do Pronacampo, várias outras soluções foram tentadas pelo Poder Público. A Escola Ativa foi a mais recente. Criada em 1996, a iniciativa foi desenvolvida até 2007 pelo Fundo de Fortalecimento da Escola (Fundescola), um projeto amplo que visava a melhorar o ensino público fundamental regular no país, sob a responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC). Em 2008, a gestão passou para a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação.
Durante o período em que a Escola Ativa esteve sob a responsabilidade do FNDE, o número de escolas rurais que adotaram sua metodologia passou de 943 (Fundescola 1) para 5.333 (Fundescola 2). Portanto, 3.748 escolas foram acrescentadas no Fundescola 3-A e, em 2008, quando a gestão passou para a Secad, a Escola Ativa deu um salto e a metodologia foi implantada em 53 mil escolas rurais.
A contextualização do fato ajudaria na repercussão da informação. Sem contar que seria interessante à reportagem tomar notas dos resultados positivos obtidos pelas experiências anteriores, como a Escola Ativa; das falhas avaliadas nas abordagens e as barreiras à execução, e da contribuição dessas experiências à redefinição dos eixos estratégicos das novas abordagens. E quem sabe até dos desvios que ocorrem quando os projetos caducam, como parece ter acontecido com a Escola Ativa em 2010 e 2011.[4]
Outro ponto importante, caso o tema fosse contextualizado, seria a relação do governo federal com os movimentos sociais e outras entidades da sociedade civil que representam os segmentos não privilegiados no meio rural. O governo federal foi criticado por não dar atenção suficiente às reivindicações dos movimentos sociais rurais e por sua atuação nessa e em outras áreas por meio de organizações não governamentais (ONGs), além de sofrer censura pela falta de idoneidade de algumas ONGs.
Será então que o Pronacampo constitui a resposta do governo federal a essas críticas, assumindo uma atuação mais direta no campo em conjunto com os movimentos sociais? Embora a ABr não tenha sido totalmente omissa, como podemos observar na própria matéria alvo de critica pelo leitor, que diz: “O Pronacampo foi encomendado por Dilma ao Ministério da Educação em 2011. O processo de negociação também envolveu reuniões entre entidades e movimentos sociais ligados ao campo e o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho”. No entanto, essa linha de raciocínio merecia atenção maior do que a que foi dispensada pela cobertura. Vários fatos a reforçam. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República vinha demonstrando maior disposição da Presidência da República a abrir espaço para o diálogo com os movimentos sociais. O anúncio do Pronacampo veio uma semana depois da substituição do titular do Ministério de Desenvolvimento Agrário. O Valor Econômico chegou a publicar uma matéria intitulada Presidente afaga movimentos do campo (http://www.valor.com.br/politica/2579772/presidente-afaga-movimentos-do-campo)[3].
Uma visão mais ampla, porém, teria que levar em conta que a presidenta Dilma tinha encomendado o Pronacampo ao MEC em meados de 2011, que a notícia tinha sido anunciada pelo ministro Aloizio Mercadante ao tomar posse no MEC em janeiro deste ano e, principalmente, que o Pronacampo vai funcionar no âmbito das estruturas burocráticas do MEC e dentro do sistema federativo do Estado, contando com a colaboração dos estados e municípios, além de respeitar a política de autonomia das escolas e dos professores, inclusive, na escolha dos livros e outros materiais pedagógicos.
Para esclarecer todos esses aspectos a ABr poderia ter repercutido a noticia, sobretudo com os representantes dos movimentos sociais, prefeitos, autoridades estaduais e municipais de educação e diretores de escolas e professores. Nos blogs e sites da “grande imprensa” na internet observa-se que a maioria dos comentários consiste em elogios, inclusive de representantes dos ruralistas como a senadora Katia Abreu (PSD-TO), que assistiu à solenidade de lançamento do projeto, mas há também ressalvas de representantes dos movimentos sociais e de outras entidades ligadas à educação no campo, como é o caso de José Wilson Gonçalves, representante da Comissão Nacional de Educação do Campo, que destacou que é preciso haver um pacto entre os governos federal, estaduais e municipais para a efetiva implantação do Pronacampo “na base”[5].
De acordo também com Elisângela Araújo, coordenadora-geral da Fetraf-Brasil, “é necessário que programas que já existem voltados para a educação no campo sejam reestruturados, como o Saberes da Terra, que não avançou significativamente devido à falta de participação social”[6].
Enfim, que as experiências anteriores sejam aproveitadas para que os novos materiais diferenciados sejam melhores que os velhos. E que haja equilíbrio no embate entre os setores gerenciais e progressivos nos órgãos educacionais do governo para que haja ampla aplicação das lições ainda mais velhas de Paulo Freire, que valorizou a participação das comunidades no desenvolvimento da sua pedagogia libertadora, na qual essa participação, com as características próprias de cada comunidade, é essencial no processo da elaboração dos materiais.
Uma boa leitura
[1] FREIRE, Paulo.
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 15° edição. São Paulo: Paz e Terra, 2000.[2] O Pronacampo é um conjunto de ações articuladas que asseguram a melhoria do ensino nas redes existentes, bem como a formação de professores, produção de material didático específico, acessoa e recuperação da infraestrutura e qualidade na educação no campo em todas as etas e modalidades, prevista no Decreto n° 7.352/2010.
[3] http://www.valor.com.br/politica/2579772/presidente-afaga-movimentos-do-campo).
[4] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-06-04/mec-reconhece-erros-em-livro-didatico-e-diz-que-vai-investigar
[5] http://www.valor.com.br/politica/2578744/dilma-diz-que-pronacampo-vai-qualificar-reforma-agraria
[6] http://www.fetraf.org.br/site/noticia.php?not=not_fora_home&&id=1631