Há um esforço de setores da sociedade em apagar a ditadura da história do país, diz filósofo

30/01/2010 - 10h08

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Após a Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes revelaram que seus carrascosasseguravam que ninguém acreditaria no que havia ocorrido nos campos deconcentração. Ahistória, no entanto, não cumpriu o destino previsto pelos nazistas, muitos foramcondenados e o episódio marca a pior lembrança da humanidade.Crimescometidos em outros momentos de exceção também levaram violadores dedireitos humanos a serem interrogados em comissões da verdade e punidospor tribunais, como na África doSul, em Ruanda, na Argentina, no Uruguai e Paraguai.Para filósofo VladimirSafatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), háum lugar que resiste à memória do horror e a fazer justiça às vítimas: o Brasil. Nenhum agente doEstado ditatorial (1964-1985), envolvido em crimes como sequestro,tortura, estupro e assassinato de dissidentes políticos, foi ajulgamento e preso. Em março, será lançado o livro O Que Resta da Ditadura (editora Boitemço), organizado por Safatle e Edson Teles. A obra tenta entender como a impunidade se forma e se alimentano Brasil. Para Safatle,o Brasil continua uma democracia imperfeita por resistir a uma reavaliação do período da ditadura militar (1964-1985) e por manter uma relação complicada entre os Três Poderes. Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?VladimirSafatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar aditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentamreduzir o período à vigência do AI-5 [AtoInstitucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderiatecnicamente chamar de ditadura. Ou seja, existe mesmo no Brasil umesforço muito diferente de outros países da América Latina,que passaram por situações semelhantes, que era aconfrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história.ABr: Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditaduraclássica depois de 1964, mas sim uma "ditabranda" se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo. Safatle: Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível paraqualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar queuma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegueempilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o quesignifica uma ditadura para a vida nacional. A princípio, a quantidadede mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadurabrasileira se perpetuou. O Brasil é o único país da América Latinaonde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Issodemostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes. ABr: Qual o reflexo disso?Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social epolítico do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadurade certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamenteperverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade paraencobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar aaparência de legalidade. Quando o regime queria de fatoassassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estardentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroíacompletamente a ideia de legalidade. É um dosdefeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua.ABr: Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura? Safatle: Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve umadepuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrardelegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, aindaem atividade. No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou umdelegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento deOperações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna]. Tevetoda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasseatrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos própriosagentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entenderpor que as práticas não mudaram.ABr: Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado?Safatle: Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituídouma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foipreso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o dafamília Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, quefoi uma declaração simplesmente de crime. Ninguém estápedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não hánenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinhaassinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura,nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à Áfricado Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai.ABr: Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento daComissão Nacional da Verdade, prevista no ProgramaNacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura? Safatle: Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecidoe merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito peloministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, daPresidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícilfalar o que vai acontecer. A gente está entrando numadimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nossofuturo se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell,que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer comesse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o deverde memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido. ABr: Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados.Safatle: O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato asposições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja aquestão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3]em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei. O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para adiscussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia nãovale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de umdebate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar quecertos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a essestipos de atividades de “terroristas”. Ésempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia,desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contraporde forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação.ABr: O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têmqualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaramda luta armada. Usar a palavra é errado?Safatle:Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizarprofundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através dainstitucionalização de uma situação ilegal.Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, crioueleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezesque o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivonão admitia certas leis. O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais,marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesmamaneira.Um Estado que entra numa posição ilegalnão tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutamcontra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa dedesqualificar a distinção clara entre direito e Justiça. Em certassituações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturasdo Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existemcertos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do quehouve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmentediferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não hácasos no Brasil de atentado contra a população civil. Todosos alvos foram ligados ao governo.ABr: Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências? Safatle: Todos os que participaram a atentados a bancos não foramcontemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagarampelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear adiscussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneiraalguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãoscontra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto abanco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a  luta contrao aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noçãoliberal de democracia.ABr: Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado?Safatle: É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, umasemidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país dedemocracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste empensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias:ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Serianecessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: asdemocracias imperfeitas.ABr: O que isso significa?Safatle: Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há umasituação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo deaperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que aNova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade. É umperíodo muito evidente que demonstra como a democracia brasileirarepete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu umimpeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emendade reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido portodos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos decorrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleitomuito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativomais ou menos nas mesmas bases. Chamar isso de consolidação daestrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, umainterferência do poder econômico privado nas decisões degoverno. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todossabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos semexceção.