Por Spensy Pimentel
Enviado especial a Luanda
Angola espera ansiosa pela chegada do "presidente proletário do Brasil, terra de Jorge Amado e Pelé", é o que anuncia a vinheta da rádio local. A mídia daquele que é considerado historicamente o maior parceiro brasileiro no continente africano deve voltar os olhos do país para a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O desembarque acontece no aeroporto da capital, Luanda, no início da noite deste domingo (2).
O país comemora com um festival, nos dias 10 e 11, o 28º aniversário de sua independência da metrópole portuguesa. É tão somente a segunda vez que a data é lembrada pela população sem o terror dos 27 anos de guerra civil iniciados logo após a emancipação. O conflito causou, ao todo, a morte de cerca de 1 milhão de pessoas, numa população que não chega a 14 milhões. A paz foi garantida em abril do ano passado, com um tratado entre o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), partido do presidente José Eduardo dos Santos, no governo desde 1980, e a Unita (União pela Libertação Total de Angola). Esse grupo guerrilheiro só sentou à mesa de conversação após a morte de seu líder máximo, Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002.
"Reconstrução nacional" é o bordão geral. "Ainda estamos a engatinhar", diz à TV o cantor de semba e kizomba – ritmos locais. "Roma e Pavia, não se constroem em um dia", ressoa, em pedido de paciência para com o governo, o arquiteto Jaime Cravide, 65. Antigo trabalhador da
construtora brasileira Mendes Júnior no Iraque, evoca suas "boas lembranças" dos colegas, materializadas no violão mineiro que mantém em casa.
Os angolanos se esforçam por reconstruir não só uma nação arrasada pela guerra, mas também sua imagem nas mentes dos estrangeiros. O título de país com o maior número de minas terrestres em todo o mundo é questionado pelo governo. A alegação é que as ongs internacionais
"inflacionaram" as cifras a partir de projeções que não podiam ser verificadas in loco durante os conflitos, como motivação extra para os doadores de recursos destinados à manutenção desses organismos. A antiga estimativa de algo entre 10 milhões e 20 milhões de minas enterradas é
substituída por "menos de 5 milhões", com a ressalva de que os campos minados estão hoje devidamente sinalizados e apenas à espera de sua vez na fila para a visita das equipes de desminagem.
Entre os cerca de 150 mil mutilados pelas minas, ainda são poucos os que têm a sorte de encontrar lugar no renascente mercado de trabalho. A Odebrecht, construtora brasileira, emprega cerca de 200 deles, como parte de seus programas de ação social. Os veteranos de guerra contam com uma pensão que não vai além de US$ 150 mensais (uma faxineira que trabalhe para estrangeiros pode ganhar mais de US$ 200).
Em lugar da matemática macabra da guerra, entra a sedução do crescimento econômico. O discurso político ufana-se na enumeração das riquezas naturais do país. O território tem área equivalente à do estado do Pará e é rico em minérios, diamante e petróleo, além de contar com cinco grandes rios e boa parcela de terras agricultáveis. A produção angolana de petróleo pode alcançar 2 milhões de barris ao dia ainda no ano que vem. O país já é o oitavo maior fornecedor para o mercado norte-americano e a perspectiva é de chegar em breve a produzir de 12% a
14% do petróleo consumido pelos EUA. Nos próximos meses, deve entrar em operação a Hidrelétrica de Capanda, no rio Kwanza, principal obra de infra-estrutura em curso atualmente no país.
O empreendimento conta com a consultoria de Furnas e foi financiado com crédito brasileiro de US$ 1 bilhão ao longo das duas últimas décadas. No caso da Petrobrás, que há 24 anos mantém representação no país, os resultados ainda são tímidos, em comparação com o salto recente na
produção brasileira. Em parceria com companhias internacionais, uma área é explorada e outra se encontra em fase de pesquisa. Cerca de 13 mil barris por dia são extraídos.
Mas, as expectativas em torno das novas áreas em licitação pelo governo angolano são grandes, segundo a empresa. A região do Golfo da Guiné, que abarca, além do norte de Angola, países como a Nigéria e São Tomé e Príncipe, é considerada uma das fronteiras do petróleo no mundo. Segundo analistas do setor, pode se constituir numa alternativa para os Estados Unidos garantirem o fornecimento do produto, no caso da eventual deflagração de conflitos generalizados no Oriente Médio.
"Está tudo por fazer aqui", define o diretor da Petrobrás em Angola, Renato Azevedo. "Há muitas carências, mas é o grande desafio de reconstruir o país", completa. O entusiasmo tem contaminado até mesmo pequenos e médios empresários. Na carência generalizada em que se
encontra o país, a fortuna surge numa roda, como no tarô. Na lista das iniciativas dos "brazucas", como dizem os angolanos, estão as mais diversas empresas, como uma pequena indústria de ensacamento de pipoca pronta, outra de importação e distribuição de roupas do Brasil, o
primeiro restaurante self-service por kilo do país e até mesmo uma inédita central de rádio táxi, cujos motoristas foram treinados com o auxílio de brasileiros.
Fundada há quatro meses e reconhecida legalmente pelo governo angolano há dois, a Associação de Empresários e Executivos Brasileiros em Angola, Aebran, deve se encontrar com o presidente Lula para entregar-lhe uma lista de medidas que possibilitem a expansão dos negócios entre os dois países. Entre as sugestões, que já estão em estudo pelo governo
brasileiro, a extinção da exigência de vistos de entrada para os cidadãos em trânsito entre os dois países, a revisão das taxas no comércio bilateral, a criação de agências dos bancos públicos
brasileiros no país e o aumento das linhas aéreas e marítimas, para baratear o frete – hoje, o preço da passagem de ida e volta entre Luanda e o Rio de Janeiro chega a quase US$ 2 mil. Os 68 associados da entidade movimentam cerca de US$ 500 milhões anuais. Na lista, gente que já está no país há 20 anos, como o médico que preside o comitê de instalação da Aebran, Carmo Filho. É ele quem dá a dica: "O segredo é vir para cá com muita disposição de trabalho, porque é tempo de reconstrução".
Namoro concorrido
Angola já sofreu com o colonialismo obstinado dos portugueses. Até recentemente, eles tratavam os territórios africanos lusófonos como um símbolo do pioneirismo luso na navegação, de cinco séculos atrás, ao mesmo tempo em que consideravam um direito de estado a exploração gratuita da sua mão-de-obra. "O indígena tem a obrigação moral e legal de trabalhar", dizia o "código de trabalho indígena" português de 1928, sobre os habitantes das colônias africanas.
Quando pensaram livrar-se do jugo estrangeiro, viram-se novamente como personagens de um outro teatro cujo texto não haviam escrito, a Guerra Fria. O apoio norte-americano e sul-africano à Unita, bem como a colaboração com soviéticos e cubanos da parte do MPLA alimentou o
conflito no início. O suporte mudou, respectivamente, para os dólares do petróleo do litoral e o contrabando dos diamantes do interior, com a dissolução do xadrez global jogado por EUA e URSS nos anos 80.
Hoje, o país debuta no plano da globalização econômica e as cortes dos pretendentes ao nascente mercado angolano se sucedem com rapidez. Só esta semana, passaram por Luanda o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, o primeiro-ministro português Durão Barroso, acompanhado de dez ministros, e uma representação do governo alemão. Há quinze dias, uma
missão comercial norte-americana esteve em Luanda – os EUA concluem atualmente a construção de uma nova embaixada na capital, um bunker de grossas paredes de concreto e altos muros no bairro de Miramar.
Para encarar a pesada concorrência, o Brasil tem condições ímpares, na visão de analistas como o embaixador do País em Luanda, Jorge Taunay: "Somos ambos países em desenvolvimento e, além da língua comum, temos o know how necessário às latitudes tropicais, como o que desenvolveu a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), por exemplo". Taunay sublinha um fator algo mais intangível nessa equação: "Nosso jeito de ser combina bem com o deles". O taxista angolano Miguel dos Santos sorri e concorda: "Os brasileiros, como nós, são informais, gostam de brincar".
Mas, o desafio maior é uma velha conhecida dos brasileiros, a desigualdade social. O país vive entre duas economias distintas, a do kwanza e a do dólar. O recém instituído salário mínimo não passa do equivalente a US$ 50, mas, mesmo assim, é negligenciado na maior parte do país. Enquanto isso, na capital, os trabalhadores estrangeiros pagam aluguéis superiores a US$ 1.000 por uma quitinete, e uma conta no restaurante não sai por menos de US$ 10. No ranking internacional do Índice de Desenvolvimento Humano, o país está na 164ª posição. Segundo o
Banco Mundial, o crescimento do Produto Interno Bruto angolano foi de 17,1% de 2001 para 2002, o que o fez chegar a US$ 11,4 bilhões. A expectativa de vida ainda é de 46,7 anos, mais de metade da população é analfabeta e 260 crianças a cada 1.000 nascidas morrem antes de completar 5 anos.
A profusão de luxuosos picapes e jipes de montadoras asiáticas, além de improváveis Mercedes e BMWs na capital é resultado do dinheiro que já começa a chegar, mas ainda permanece na mão de poucos – e, entre estes poucos, há muitos estrangeiros brancos. O resultado é um clima de
ressentimento. Ele se mantém surdo na maior parte do tempo, em pedidos de esmola ao menor olhar, muito além do exército de flanelinhas, vendedores ambulantes e engraxates que se espalha pelas esquinas da capital. A ebulição surge em situações como um acidente de trânsito ou o
aparecimento de um "pula" – como são pejorativamente chamados os brancos – numa feira popular lotada, em que se pode atacar e desaparecer na multidão. Não há aspas possíveis a destacar aqui, só olhares, e o relato de brasileiros que, vez ou outra, emudecem diante de um choro de desespero pela miséria em plena rua. Os contrastes sociais fornecem, mais uma vez, a evidência de que, afinal, como dizem os entusiastas da aproximação bilateral, "somos países irmãos".