José Sarney: "As paixões desencadeadas tornaram inevitável aquele desfecho"

29/03/2004 - 21h49

Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - O presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-AP), era deputado federal em 1964. No fim de março, fervilhavam na Câmara informações sobre o golpe militar e o jovem deputado sentia-se como alguém "no meio do furacão, mas sem saber exatamente o que estava ocorrendo". O partido de Sarney (UDN - União Democrática Nacional) apoiou o movimento desde o começo, mas o senador diz que não participou de qualquer conspiração.

Governador do Maranhão em 1965 e presidente da República, em 1985, com a morte do presidente eleito Tancredo Neves, Sarney orgulha-se hoje, aos 74 anos, de pertencer à Academia Brasileira de Letras. Em depoimento à Agência Brasil, Sarney revela admiração pelo presidente Castello Branco, o primeiro do ciclo militar, que considera a figura mais importante do regime. "Se não fosse ele, teríamos baixado para uma quartelada terrível no Brasil", afirma o senador.

Perplexidade

"Nos dia 31 de março e 1° de abril, estava na Câmara Federal. Vivíamos um momento de grande perplexidade. Ninguém sabia o que estava ocorrendo, pois não tínhamos a televisão de hoje, em que os fatos são instantâneos, reproduzidos em tempo real. O mundo do boato, do faz-de-conta, era muito maior do que os fatos, que hoje são vistos com clareza. A não ser as pessoas que estavam envolvidas e tinham notícias diretas, ninguém sabia exatamente o que estava ocorrendo, até o momento dramático em que se anuncia a saída de Jango do país e (Ranieri) Mazzilli toma posse como presidente. Eu estava naquela sessão, vi e vivi aquele momento dramático".

Opinião pública

"Não participei das articulações que levaram ao golpe de 64. Havia uma área política grande que apoiava e conspirava, mas eu não fazia parte dela. Tanto que, no dia 19 de março, havia feito um discurso assim meio fora do contexto, aparteado por deputados de ambas as correntes, pedindo a conciliação. Hoje posso ver que, naquele tempo, era uma coisa totalmente fora, porque as paixões desencadeadas eram tão fortes que inevitavelmente iriam ter o desfecho que tiveram. Por sua própria estrutura, o governo de Jango, um vice-presidente que assumiu no meio de uma condição dramática, era alvo de muitas restrições. Vinha desde o governo Vargas e não teve a capacidade de unir as forças políticas do país, nem de atravessar aquele período. Assim, seu governo foi se enfraquecendo cada vez mais e, em 64, havia uma total paralisia nacional e a opinião pública era toda contra o governo.

É muito difícil recompor o clima daquele tempo. O mundo era marcado pela luta entre comunismo e capitalismo, e a América Latina estava envolvida em movimentos populares em torno dessas ideologias. Tínhamos saído da crise dos foguetes de Cuba, que quase levou a humanidade a uma guerra nuclear, e foi nesse contexto que o governo Jango mostrou sua incapacidade de administrar aquele momento. Em conseqüência, foi perdendo gradativamente os apoios políticos e militares que podia ter. E chega-se, inevitavelmente, a um momento no qual, mais uma vez, os militares intervêm na política brasileira, como vinham fazendo desde a fundação da República, agindo como se tivessem poder de juízes no meio das crises políticas".

Embate entre militares

"A revolução teve duas vertentes: uma militar e outra civil. A civil girava em torno de Castello Branco, e a militar, em torno do marechal Costa e Silva. Foi a mesma coisa que aconteceu na República, entre o Floriano e o Deodoro. Castello Branco foi escolhido porque era apoiado por políticos como Carlos Lacerda, boa parte dos governadores da UDN, como Magalhães Pinto, e o paulista Adhemar de Barros. Grandes estados apoiaram Castello, ele tinha um compromisso democrático de restaurar o processo político, que estava sendo truncado. Achava-se isso. Não se trata de um juízo de valor: estou apenas prestando um depoimento sobre o que se falava e o que se assistia aqui, naquele tempo.

Começa a luta entre os militares da linha dura e aqueles grupos políticos. Os militares vencem porque Castello, depois da tentativa de promover eleições em 65, foi incapaz de realizar as eleições presidenciais, que viriam em seguida. Aí, a linha dura toma conta realmente do poder e os 21 anos do regime vão ser marcados por essa luta entre os militares da linha dura e os que querem a restauração democrática, até que as idéias de Castello renasçam com Geisel, que inicia a abertura política, mas com aquele mesmo espírito autoritário".

Capital estrangeiro

"Uma das grandes discussões no país, à época, era sobre o capital estrangeiro. Logo que cheguei ao Congresso, como deputado, um dos primeiros projetos que fiz foi para regulamentar a participação do capital estrangeiro. Nosso medo era a invasão do país, eram essas as idéias daquele tempo, e hoje vemos as coisas sob uma perspectiva diferente. Naquele tempo, portanto, a preocupação era justamente essa, e os debates versavam sobre o controle do capital estrangeiro no Brasil, que era apoiado entusiasticamente por todas as alas da UDN. E não só esta proposta, mas apoiávamos também toda a retórica das reformas pregada pelo Jango, pelo menos no meu grupo. Éramos da Bossa Nova da UDN".

Monitorando o Golpe

"A participação dos Estados Unidos no golpe de 64 ainda hoje alimenta as discussões, a partir de documentos liberados pelo Departamento de Estado Americano e pesquisados por historiadores. Se tais documentos não dizem que os Estados Unidos participaram do processo, ao menos esclarecem que eles acompanharam o golpe muito de perto, monitorando seus desdobramentos. A historia vai se abrindo com o tempo e revelando seus segredos".

Castello, o melhor

"Em 65, fui eleito governador do Maranhão, como candidato da oposição. Fui, portanto, contra o AI-5 e o único governador a tomar uma atitude efetiva, ao passar um telegrama ao presidente Castello Branco, manifestando a esperança de que o regime democrático fosse instalado no país. Isso me custou muitos problemas, mas continuo achando que a importância do Castello Branco no processo foi fundamental para que não tivéssemos uma quartelada terrível no Brasil. Foi ele quem deu essa aparência que delimitou o golpe. Ele estabeleceu uma coisa inacreditável: a eleição de um ditador de quatro em quatro anos. O candidato tinha de se inscrever e era eleito por nós, no Congresso, embora as decisões fossem tomadas dentro dos quartéis. Tinha liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que não tinha. Era um processo complicado, mas o presidente Castello Branco, por suas intervenções, tornou-se a figura mais importante do período. A tal extremo, levou suas decisões que evitou a prorrogação de seu mandato, garantindo que não continuaria nem um dia a mais porque queria que houvesse alternância no poder".

O caminho da volta

"Todos sabem como os processos começam, mas ninguém pode prever como terminam. Ninguém podia prever a duração do golpe. A preocupação de todos era que a saída não se constituísse num processo traumático, duro, como já aconteceu em alguns países aqui da América Latina, como o Chile, que teve uma transição tutelada pelos militares, e a Argentina, que também enfrentou problemas muito sérios. Nossa grande preocupação era sair do processo sem maiores traumas e sem divisão da sociedade brasileira. Acho que conseguimos isso. O Geisel foi importante nesse processo de abertura. Quando a classe civil tomou conta, restauramos não só as instituições democráticas, como também criamos uma sociedade democrática, que é o mais importante para o Brasil. Isso significa que o país não ficou rachado, dividido, cobrando hipoteca sobre o passado daquele tempo.

Conseguimos reconstruir o país, e reconstruir dentro de uma sociedade democrática, a partir então de 85, e eu nunca pensei que fosse a pessoa a comandar esse processo. Acabamos com a censura, garantimos a liberdade, promovemos a reestruturação dos partidos políticos e toda a clandestinidade desapareceu. Os grupos políticos que viviam na clandestinidade foram todos eles legalizados, um clima de liberdade floresceu em todo o país. Com a convocação da Constituinte, a sociedade se organiza e, num sistema de capilaridade, derrama-se sobre todo o sistema social do país. Hoje somos uma das democracias mais sólidas, não somente em razão das instituições, mas sobretudo porque temos uma sociedade democrática. Basta saber que todo dia estamos vendo como a sociedade se organiza, como protesta, como influencia, como procura decidir.

Eu quero puxar a brasa um pouquinho para a minha sardinha e dizer que isso começou com o Plano Cruzado, quando tive a oportunidade de dizer ao povo brasileiro: 'Você é fiscal do Sarney, você é fiscal do governo'. Então, cada brasileiro passou a ter noção de que era influente dentro do processo de decisão. Aí, entram as leis do consumidor, todo esse processo de organização da sociedade, com todo mundo se organizando, clube, sindicato. E isso fez com que o Brasil se transformasse no que todos nós hoje estamos vivendo. De tal modo que chegamos ao final, já no meu governo, em que um operário foi candidato à Presidência da República, o Lula, que chegou perto, bem perto de ser presidente, o que acabou acontecendo mais tarde. Esse é o processo que o Brasil foi capaz de conduzir e que nós, políticos, podemos dizer que construimos".

Construindo pontes

"Durante o regime de 64, havia um grupo que sempre pugnou por uma saída democrática, construindo essa saída com pontes dentro da oposição. Mesmo no tempo em que eu, Ulysses (Guimarães), Tancredo (Neves) e (Nelson) Marchezan, fazíamos parte do ‘sacro colégio’, eu me reunia com outros como Teotônio (Vilella), (Daniel) Krieger, Petrônio (Portella), para, numa conspiração do bem comum, atravessar crises. E, graças a essa união, foi possível chegar até onde chegamos hoje".

Herança

"Acho que não podemos analisar, em termos de herança, o legado econômico da ditadura. Aquele foi um período em que o país teve recursos, mas teve também a revolução da Opep (Organização dos Países Produtores de Petróleo), que promoveu a valorização dos preços do petróleo e gerou os petrodólares. O país se endividou para construir grandes obras, que foram importantes para todos. Um exemplo é o setor elétrico, em que se construiu uma obra extraordinária. O que seria do Brasil, se hoje nós não tivéssemos esse parque energético, construído ao longo desses anos, como Itaipu, as grandes obras hidrelétricas? A infra-estrutura construída com o dinheiro internacional foi a responsável pelo crescimento da divida externa. É fato, portanto, que tenhamos herdado uma dívida externa grande, que impediu a construção de obras que o povo esperava. Daí porque o meu governo foi marcado justamente por uma construção política muito mais importante, porque a economia é transitória, mas as instituições políticas são definitivas. A partir daquele tempo, construímos uma grande obra política que está até hoje resistindo e se consolidando como um patrimônio para o Brasil".

Sem ressentimentos

"Eu nunca guardei ressentimento por não ter recebido a faixa presidencial do meu antecessor (João Figueiredo, último presidente do regime militar). O ressentimento é coisa negativa, que faz muito mal às pessoas. Não é do meu temperamento ficar ressentido. O importante para todos nós era que o Brasil estava atravessando um momento dramático de transição e que, com o Tancredo doente, não se sabia o que podia ocorrer. O importante era que nós não interrompêssemos o processo político, que déssemos continuidade a ele, e foi possível fazer isso. A faixa era uma coisa simbólica, que não pesou. Se o Figueiredo saiu do Planalto pelos fundos, eu passei a faixa a meu sucessor e saí pela frente".

Gerir o processo

"Dos governos anteriores à revolução, destaco Juscelino, pela grande obra que fez. Um presidente que tinha o espírito brasileiro, aquele espírito aberto, que cultivava a alegria, o otimismo, mas também foi marcado pelo processo político. Basta lembrar que, para assumir, foi preciso o general Lott aparar o golpe de 55, além dos dois movimentos em Aragarças querendo sua deposição. Eu acredito que Juscelino, quando fez Brasília, fez um pouco do que Dom João VI havia feito quando veio de Portugal para o Brasil, porque, se ficasse lá, teria sido deposto pelas tropas de Napoleão. Se Juscelino ficasse no Rio, o caminho dele também passaria inevitavelmente por mais uma ruptura democrática. Então, ele constrói Brasília, com grande competência, o que faltou a Getúlio Vargas, em 50.

Sem capacidade para gerir o processo político, Getúlio foi perdendo apoios e chegou a tal ponto que foi obrigado a se matar. Juscelino, ao contrário, entrou no processo envolvido por grandes dificuldades, mas conseguiu construir Brasília, restaurar a confiança nacional e contornar os problemas militares. Alguns presidentes foram marcados para ser depostos. Juscelino entrou para ser deposto, mas não foi. Eu também entrei para ser deposto. Não fui e terminei o governo. Há um discurso em que Juscelino diz: ‘A maior obra que eu fiz foi ter evitado que o Brasil tivesse mais uma ruptura no processo institucional’. Essa era uma preocupação muito relevante no passado, porque o presidente tinha de buscar a legitimação e ser capaz de manter-se no poder para evitar que se truncasse o processo institucional.

Jânio (Quadros) não teve essa capacidade. Ele chegou à Presidência com todo apoio nacional, mas, diante das pressões e dos problemas, renunciou. O Jango também não teve condições de superar as pressões e controlar os processos.

Portanto, minha grande preocupação era justamente essa: chegar ao fim do mandato administrando as tensões e pressões. Até porque, como vice-presidente, sem apoio político, com um ministério todo que eu não conhecia, tinha de administrar um programa que também não conhecia, nem tinha organizado. Com um país efervescendo, mas conhecendo o processo político e o que tinha acontecido com meus antecessores, convoquei a Constituinte e consegui chegar ao fim do mandato, entregar a faixa a meu sucessor e ver o Brasil com uma democracia consolidada".