Pertence: "Não teriam entusiasmo pelo golpe se previssem que era o começo de 20 anos autoritarismo''

29/03/2004 - 20h51

Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - À altura do Golpe Militar de 1964 já membro do Ministério Público do Distrito Federal, José Paulo Sepúlveda Pertence, 66, conta que não teve problemas para se livrar da prisão em que o queriam pôr após o Ato Institucional número 1, em 9 de abril. Continuou, por pelo menos um ano, a lecionar na Universidade de Brasília, projeto de Darcy Ribeiro que seduzira aquele jovem advogado recém-chegado de Belo Horizonte pelas novidades em relação aos velhos modelos que ainda dominavam o ensino superior do resto do país.

Em sua entrevista à Agência Brasil, Pertence entremeia análises do contexto social da época a risos com o absurdo de situações como a apreensão de uma revista de arquitetura chamada Comunitas na biblioteca da UnB, tomada por material de divulgação de "idéias comunistas". O ministro do Supremo Tribunal Federal que um dia recebeu Fidel Castro na sede da União Nacional dos Estudantes vê com olhos de magistrado o passado e percebe o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil ao golpe de 64 como o de uma "típica instituição de elite da classe média brasileira". Leia a seguir os principais trechos do depoimento.

Aventura em Brasília

"Eu me formei em Belo Horizonte na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 1960, com um grupo de três ou quatro amigos, por essas e aquelas razões, resolvemos viver a aventura de Brasília então nascente. Já em março de 1961, chegava para criar um escritório, que foi, de certo modo, durante alguns anos, o prolongamento de uma república de estudantes.

Logo depois, fui seduzido pelo projeto da Universidade de Brasília, que então recrutava um corpo de jovens recém formados em várias especialidades, que compuseram os pós-graduandos, ao mesmo tempo auxiliavam nas tarefas docentes da universidade e eram os instrutores da universidade. Entrei na UnB por indicação do ministro Vitor Nunes Leal. Ele era o diretor do embrião do Instituto de Ciências Humanas, que se chamou o Curso Tronco de Direito, Administração e Economia".

Os primeiros anos da UnB

"A Universidade de Brasília era bem diferente das outras universidades. Primeiro, havia a supressão do catedrático e a sua substituição por um organismo coletivo, que era o departamento. O currículo inflexível dos estudantes foi substituído por um sistema que respeitava a disponibilidade e as possibilidades de cada estudante.

Por exemplo, cada estudante devia ter entre os membros do corpo docente um orientador permanente para orientar os seus estudos, era com quem ele discutia suas dificuldades. E isso com um corpo de professores titulares de alta categoria, e como projeto o que Darcy Ribeiro chamava as duas lealdades básicas, aos padrões internacionais da ciência, mas também à discussão e a elaboração de soluções dos grandes problemas nacionais.

A UnB começou com extrema precariedade. O curso de Direito mesmo teve quase todo seu semestre em instalações emprestadas pelo Ministério da Saúde. Depois, aos poucos é que se foram instalando os primeiros blocos no campus da universidade, mas ainda em condições extremamente precárias.

Isso gerou uma série de outras características não oficiais, meio estatutárias, mas que chamaram muito a atenção. E irritaram muito os meios mais conservadores. Muitos dos professores trabalhavam em tempo integral, o que então era raríssimo na universidade brasileira, dando aula sem gravata e de calça jeans (risos)".

Reformas

"Ao que eu me membro, naquela época, no governo Jango, havia problemas pontuais de uma reforma na qual a mudança no sistema eleitoral não chegou a se concretizar. Havia duas propostas polêmicas: uma, de maior alcance, era o voto do analfabeto; outra, isso já no final do governo Jango, foi o estopim de um episódio militar chamado de ‘Revolta dos Sargentos’, motivada por uma decisão do Supremo Tribunal que cassou o diploma de um deputado que era sargento e estaria inelegível.

A esquerda, um tanto ingenuamente, considerava que o voto do analfabeto lhe seria propício. E a direita, também um pouco ingenuamente, achava que o analfabeto iria votar na esquerda. Foi um diálogo de surdos, um equívoco recíproco. O voto do analfabeto só foi estabelecido em 1985, nas reformas que antecederam a Constituinte.

Um dos ministros da Educação do governo João Goulart foi Darcy Ribeiro. Com isso, ganhou muito vulto o projeto da Universidade de Brasília como um projeto de universidade para o Brasil. E coincidente, em grande parte, com o que a UNE já agitava desde a década anterior".

Golpe desacreditado

"No dia 31 de março, eu continuava na Universidade de Brasília e tinha sido recentemente empossado no Ministério Público no Distrito Federal. Mas as minhas recordações daqueles dias são quase todas na UnB. Na manhã de 31 de março, eu tive uma conversa com Waldir Pires, então consultor Geral da República e professor da UnB. Nos pareceu que seria uma tentativa que seria esmagada facilmente.

Falava-se em um dispositivo militar do João Goulart que seria esmagador. Então, em 31 de março, Brasília, pelo menos, não deu muita importância às notícias vindas de que o general Mourão Filho saíra para o Rio de Janeiro, que Magalhães Pinto se declarara o líder civil de uma revolução, que havia agitações no Rio de Janeiro em torno de Carlos Lacerda.

Pelo menos até o final da noite, quando já começaram a circular insistentemente notícias da adesão a um movimento militar do 2º Exército, o general Amaury Kruel. Até que em 1º de abril é que as coisas vão se tomando. Não apenas por preconceito, nós que vivemos aqueles dias em Brasília, continuamos a chamar aquilo de Movimento de 1º de Abril.

O certo é que, na verdade, nós mesmos, a geração que estava envolvida, achou que as instituições democráticas já eram algo definitivamente consolidado e pretendíamos, prematuramente, já haver ambiente para grandes saltos de transformação da estrutura social do país. A realidade mostrou, as forças reais cedo demonstrariam, não existiam. Seja militarmente, seja em termos sociais".

A OAB e a ditadura

"A direita, como é freqüente nesses momentos, conquistou grande contingente da classe média. Fez com que a classe média pendesse, se opusesse, que seria ela a vítima dos avanços sociais que se pregavam. Isto, somado a erros por precipitações da condução política do processo por parte do governo e das esquerdas, facilitou a tarefa do golpe.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) naquele momento era um segmento típico da classe média temerosa do que então se anunciava como ‘república sindicalista’, um passo para uma eleição populista. Eu não era na época um advogado militante, não tinha nenhuma participação na Ordem.

Mas é absolutamente compreensivo que, sendo então uma típica instituição de elite da classe média brasileira, a Ordem dos Advogados tomasse uma posição de extrema simpatia com o golpe militar. E, por outro lado, eu creio que ela participou do equívoco de pensar que seria mais uma intervenção cirúrgica das Forças Armadas, de modo a afastar a esquerda do poder e reconstituir o estado liberal.

Os homens de compromisso liberal que participaram, seja no Congresso, seja na OAB, ou em outras instituições semelhantes, do entusiasmo pelo golpe, não teriam esse entusiasmo se previssem que aquilo era o começo da implantação do regime autoritário que duraria 20 anos".

Invasão da UnB

"Seguiram-se os primeiros dias depois da saída do Jango do país, até o Ato Institucional número 1, e, esse dia, eu não tinha muita perspectiva, estava preso (risos). O Ato Institucional então sem número veio a ser depois numerado como o primeiro deles, como o Ato Institucional número 1. Foi baixado em 9 de abril à noite.

De manhã, a universidade, para usar a expressão dos heróis, foi tomada pelas tropas da Polícia Militar, e uma lista trazida de antemão convocava a reitoria para seguirmos presos para o Teatro Nacional até à noite, quando fomos transferidos para uma repartição militar, que era o BGP (Batalhão da Guarda Presidencial). Eu fiquei pouco tempo, aí já vingou o privilégio de ser do Ministério Público do Distrito Federal. Dois dias depois, fui posto sob custódia do Procurador Geral.

No primeiro dia de prisão na UnB, não foi apresentada justificativa nenhuma. Suponho que tenha sido, basicamente, pelos interrogatórios, por minha atuação da UNE (União Nacional dos Estudantes) e o encontro com Fidel Castro. Eu estava exercendo a presidência da UNE quando o Fidel veio ao Brasil em 1959. Ele tinha poucos meses de governo. A UNE foi a anfitriã no seu primeiro dia, quando ainda não era oficial, antes de ser recebido pelo presidente".

Demissões na universidade

"Na época do golpe, Brasília não tinha grande agitação. Tudo girava em torno do Rio de Janeiro. Eu comecei a ver a seriedade do golpe aqui quando fui preso no BGP. À noite, vejo deputados e magistrados chegando. Vi, então, que o bicho era bravo (risos). Na Universidade de Brasília, depois dos dias iniciais de perplexidade, foi nomeado um reitor, o professor Zeferino Vaz, que era uma figura universitária e tentava levar as coisas...

Os líderes do corpo docente também estavam procurando conter a revolta com as primeiras demissões. Até que, em meados do ano seguinte, Zeferino é substituído por um outro professor de São Paulo, Laerte Ramos de Carvalho. E aí o ambiente muda: a intervenção militar se torna ostensiva na reitoria e explode com a demissão e devolução de dois ou três professores que eram de outras universidades.

Isso resulta numa greve, que começa com os estudantes, acompanhados logo depois pelos instrutores e depois pelo corpo docente. Veio então a demissão dos 15 primeiros professores. Eu fui um dos contemplados (risos). No curso de Direito, saiu-se em busca de bacharéis que aceitassem o convite, até que anos depois, começa gradativamente a substituição por convocação. Eu fui anistiado só depois de 85, com uma solenidade. Mas aí eu pedi licença da universidade. Já era procurador Geral da República e não consegui mais conciliar a rotina de procuradoria e depois no Supremo Tribunal com a atividade docente".

Do AI-1 ao AI-5

"O Ato Institucional número 1 marcou, até a posse de Costa e Silva, aquele primeiro período do autoritarismo que correspondia mais ou menos àquela expectativa da classe média de que seria uma intervenção temporária dos militares, pelo estilo do marechal Castello Branco (presidente de 1964 a 1967). Em determinada reunião do governo, o Castello chamou alguns conselheiros, entre eles, Francisco Campos, redator da Constituição de 37, e também da exposição de motivos do Ato Institucional.

Havia lá um problema jurídico, político e militar. O presidente expôs as dificuldades, quando chegou na hora do Chico Campos, ele disse: ‘É muito simples, basta um Ato’. Em que o presidente Castelo Branco teria dito: ‘Não, mas isso contra o regulamento’. E o Campos teria dito ao seu vizinho: ‘Esse homem pensa que é civil e que foi eleito’ (risos).

Isso coincide com a entrada em vigor de uma Constituição consensuada com o Congresso em 1967, com uma certa liberalização. E vêm os primeiros movimentos de protestos, as grandes concentrações no Rio de Janeiro.

A área radical soube se aproveitar disso, somadas as passeatas, o episódio Márcio Moreira Alves (deputado federal que, em discurso no Congresso, em setembro de 68, propôs o repúdio popular ao militares e o boicote às comemorações da Semana da Pátria). Tudo isso deu o pretexto para o Ato Institucional número 5, que então foi um desencadear de uma ditadura já com pouca ou nenhuma cerimônia".

Um projeto interrompido

"Depois do AI-5, a UnB começou a sofrer invasões mais violentas, com pancadaria mesmo. Havia uma expectativa de formar uma universidade diferente. Com o tempo, muitas das feridas foram cicatrizadas e se fez uma universidade importante. Mas as suas grandes propostas de diferenciação acabaram pelos menos adiadas por tempo indefinido.

No quis diz respeito ao campo institucional geral, é muito difícil você fazer esta reconstrução de uma história que não foi. Eu creio realmente que o golpe demonstrou que a realidade ainda não estava preparada para o que nós pensávamos que já poderia dar certo.

O país hoje é inteiramente diferente. Há uma expansão da cidadania, apesar da subsistência de um perfil socialmente, brutalmente rico. Mas na verdade, há claramente uma expansão da cidadania, que não se pode negar. Eu creio que isso vai levar a avanços significativos, eu não sei se para mim, mas certamente para as gerações de vocês (risos)".

Cuba

"Na vitória, em primeiro de janeiro de 57, apareceu com todo um colorido romântico. Aquele grupo de jovens, de repente, realizava uma tomada de poder contra uma ditadura primária. Depois, toda a controvérsia sobre o desenvolvimento do governo cubano, a virada para uma ditadura marxista, um processo de valoração que ainda está em curso".

Reforma Agrária

"Pouco depois do golpe, viria a ser implantada pelo governo Castello Branco a reforma agrária. Foi o início da desapropriação dos latifúndios necessários à reforma, então inviabilizada pela exigência de pagamento de dinheiro. Todo o problema central do início da reforma agrária estaria na aprovação de uma emenda constitucional que permitisse o pagamento dos latifúndios improdutivos em títulos da dívida pública, o que veio a ser feito na primeira e segunda emenda constitucional do governo Castelo Branco, com poucas reações.

Mas, nesse momento a reforma já não tinha o apelo popular de antes. Havia projetos consistentes da reforma agrária, mas todos emperrados desse ponto do pagamento. De reforma urbana, não havia um projeto, era uma pregação. A reforma urbana só veio realmente se viabilizar com a Constituição de 88, e agora, recentemente, com o Estatuto das Cidades".