Brasília - “Faltou ouvir pelo menos algum (a) parlamentar contrário à decisão da Mesa Diretora”. Essa foi uma das observações feitas pela leitora Mel Bleil Gallo na reclamação que enviou à ouvidoria sobre a notícia publicada pela Agência Brasil no dia 10 de setembro, que tratou da resolução aprovada pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para limitar o número de pessoas nas dependências da Casa e proibir a entrada de manifestantes com faixas e outros adereços. Segundo a matéria, “a limitação foi adotada para atender orientações do Corpo de Bombeiros”. Mas a reportagem também notou que, “incomodados com as constantes manifestações no plenário e nas comissões, vários líderes haviam se manifestado favoravelmente à restrição do número de pessoas na Câmara” e citou três ocasiões em que a Câmara tinha sido “invadida” este ano por grupos que tentavam pressionar os votos dos deputados em relação a projetos e propostas em tramitação [1].
Além de denunciar a falta de contraditório na matéria, a leitora criticou a opção da Agência Brasil pelo termo “invasão”, em vez de “ocupação”, para se referir à presença de manifestantes no plenário da Câmara. De acordo com ela, “essa opção é ideológica e deslegitima, em seu discurso, uma ação completamente válida da sociedade civil de OCUPAR a chamada Casa do Povo, sua por direito. A Agência Brasil não pode funcionar como órgão de comunicação institucional dos Três Poderes. Temos que aproveitar esse espaço para dar voz de fato à pluralidade”.
Ao responder à demandante, a Diretoria de Jornalismo (Dijor) disse: “A matéria tratou de uma decisão tomada pela Mesa Diretora da Câmara sem consulta ao plenário a partir de uma orientação do Corpo de Bombeiros. A Agência Brasil costuma publicar os fatos rapidamente e registrou o caso, ainda sem as repercussões. Concordamos que o contraditório é sempre saudável na tarefa cotidiana do jornalismo de registrar os fatos, ainda mais nos veículos da EBC, que têm como parâmetro no seu Manual de Jornalismo mostrar a pluralidade e a diversidade. Diante disso, nos comprometemos a desenvolver uma pauta mostrando como a decisão ora abordada na matéria foi recebida pelos parlamentares. Habitualmente, a Agência Brasil tem tido a preocupação de usar o termo ocupação por considerá-lo apropriado, principalmente quando os espaços são públicos. Mas, nesse caso, foi usado o termo invasão porque os manifestantes forçaram a entrada no plenário empurrando a porta e houve confronto com a Polícia Legislativa”.
A palavra da Dijor foi cumprida em parte em matéria publicada no dia 24 de setembro, na qual dois cientistas políticos – um advogado especialista em direito eleitoral e um professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) – apresentaram argumentos a favor e contra a decisão [2]. Porém, faltou ouvir os parlamentares. Nessa mesma matéria, consta que um dos integrantes da Mesa Diretora, Ivan Valente, líder do PSOL, manifestou-se contra a medida. Além disso, a imprensa registrou os comentários de outro deputado do PSOL, Chico Alencar (RJ), que também se opôs à resolução: “A democracia é necessariamente ruidosa e a reivindicação também se dá por adereços. Com essa decisão, a Câmara cristaliza a errada ideia de que reivindicar é bagunça, e se torna um Parlamento virtual ao ser menos aberta às demandas sociais” [3].
Na sua mensagem, a leitora justifica a tomada dos espaços na Câmara pelos manifestantes como o exercício do direito de acesso à Casa do Povo, uma expressão muito utilizada ultimamente pelos manifestantes. Uma pesquisa da ouvidoria não conseguiu descobrir a origem da referência à Câmara como a Casa do Povo, a não ser para distingui-la do Senado, onde a representação é igualitária entre os estados, em vez de ser proporcional à população. Não é demais lembrar, porém, que a inclusão dos termos povo e popular nas denominações das instituições do Estado tem uma associação histórica com regimes que rechaçam a democracia representativa, tais como as repúblicas populares de várias vertentes totalitárias e autoritárias e Portugal no tempo do Estado Novo do Salazar, onde a Casa do Povo era a unidade básica da organização corporativa do trabalho rural ” [4]. Os regimes populistas tampouco são conhecidos por respeitar o princípio da separação dos Ppoderes.
A desilusão com a democracia representativa – o “desencanto”, como era chamado nos países ibéricos – vem aumentando, não só nos países que emergiram de regimes totalitários e autoritários a partir dos anos 80, mas também nos países onde a democracia é mais consolidada. Nas pesquisas realizadas no Brasil pela Datafolha com amostras de moradores da cidade de São Paulo sobre o prestígio de algumas instituições nacionais, o percentual que respondeu “nenhum” em relação ao prestígio do Congresso Nacional apresentou crescimento de 17% em 2003 para 34% em 2007 e 42% em junho de 2013 [5]. Outras pesquisas do Datafolha, feitas com maior frequência e com amostras nacionais, demonstram que outro indicador da percepção popular do Congresso – a avaliação do desempenho dos parlamentares – oscila bastante em intervalos curtos, mas a mesma tendência de elevação no patamar de desilusão se observa nos percentuais mínimos das respostas “ruim/péssimo” em relação ao desempenho dos senadores e deputados eleitos em 2002, 2006 e 2010: 22%, 30% e 33%, respectivamente [6].
A respeito de uma das ações citadas na matéria, quando “centenas de índios invadiram” o plenário da Câmara em abril contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00, que transfere do Executivo para o Congresso a homologação das terras indígenas e quilombolas, o cacique Ninawa, da etnia Kaximawá de Curralinho (AC), comentou: "Adentramos no Congresso Nacional, porque entendemos que é a Casa do Povo (...). Nós ocupamos, mas nesse movimento pacífico. Em nenhum momento, agredimos ninguém. O que estão sendo agredidos são os nossos direitos" [7]. Em junho, depois de um protesto em Brasília que terminou em tumulto, com uma vidraça quebrada por manifestantes e spray de pimenta lançado por policiais quando alguns manifestantes tentaram entrar no prédio do Congresso, a seguinte mensagem foi postada na página no Facebook do Anonymous Brasil (o grupo que nas manifestações adotou a máscara do protagonista anarquista da revista em quadrinhos V de Vingança, posteriormente transformada em filme): “O Congresso é a Casa do Povo. Logo, não foi invasão, só foi reiteração [sic] de posse. !!” [8].
As situações são diferentes. Portanto, presume-se que o tratamento deveria ser diferente. A dificuldade está em reconhecer as diferenças para determinar os limites e calibrar as medidas de controle sem recorrer a proibições totais, como em alguns pontos da resolução aprovada pela Mesa da Câmara. Do ponto de vista das medidas de prevenção e repressão, a mesma dificuldade existe em relação às ações que estão sendo tratadas indiscriminadamente como “atos de vandalismo”, quando na realidade elas correspondem a motivações que vão desde a delinquência juvenil, passando pela insensatez induzida pela psicologia da multidão, até a estratégia política do anarquismo, para o qual os confrontos com os policiais servem para desvelar a violência inerente do Estado. Aliás, o público está cada vez mais exposto a mensagens com esta pichada em uma quadra de Brasília: “A violência é nas filas do SUS. Não confunda a reação dos oprimidos com a violência dos opressores”. No entanto, os autores de muitos dos atos de vandalismo cometidos nos protestos não são dos segmentos sociais mal atendidos pelo SUS. No meio de toda essa fermentação social, é importante que a mídia ajude o cidadão a entender melhor quem está representando quem.
Boa Leitura!
[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-10/camara-proibe-faixas-e-limita-numero-de-visitantes
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-24/cientistas-politicos-divergem-sobre-limitacao-de-acesso-dependencias-da-camara
[3] http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:W9mww47exCUJ:www.senado.gov.br/noticias/senadonamidia/noticia.asp%3Fn%3D872592%26t%3D1+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
[4] http://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_do_povo
[5] http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2013/06/19/protestos-aumento-tarifa-ii.pdf
[6] http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2013/08/12/avaliacao-do-congresso.pdf
[7] http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/04/19/congresso-e-a-casa-do-povo-diz-cacique-sobre-invasao-de-indios-na-camara.htm
[8] https://www.facebook.com/AnonymousBr4sil/posts/477682115651678