Economia solidária pode ser saída para a crise, afirma Paul Singer

20/04/2009 - 9h24

Luciana Lima
Repórter da Agência Brasil
Brasília - Se a crise econômica bate mais forte para os mais pobres, é tambémnas comunidades carentes que surgem iniciativas que provocam maiordinamismo para as atividades comerciais locais. Clube de trocas,cooperativas de trabalhadores e de consumidores e bancoscomunitários são fenômenos da chamada economia solidária que vêmexperimentando no Brasil um verdadeiro boom e têm dado condições de sobrevivência a comunidades das periferias das grandes cidades, do campo e de cidadesmenores. O economista Paul Singer está à frente da Secretaria de Economia Solidária, doMinistério do Trabalho e Emprego. Ele avalia que, em momentos dedificuldades, há a tendência de que as pessoas busquem alternativas aomodo de produção excludente. “O que menos se troca em um clube detrocas é mercadoria. Troca-se afeição, trocam-se histórias”, cita oeconomista em entrevista à Agência Brasil, destacando o caráter inclusivo da economia solidária. “O desemprego é horrível porque ele tira as pessoas do meio social delas”, considerou.Singerevitou previsões sobre o futuro próximo, tentou se esquivar deresponder se o pior da crise já passou, mas acabou revelando que vê noatual cenário econômico brasileiro sinais de recuperação. “As vendas novarejo estão crescendo, a indústria automobilística bateu recorde em março,mas não ouso dizer que o pior já passou. Primeiro, porque eu não tenhobola de cristal, segundo, não estou falando como economistaprofissional. Mas acho que a chance é boa. Saberemos disso daqui a algunsmeses”, disse.AgênciaBrasil – A economia solidária pode ser vista como alternativa paracomunidades que sofrem com o colapso da economia de mercado?PaulSinger – Com certeza. A economia solidária surge no Brasil em ummomento de forte crise. Uma crise à qual eu chamaria de tragédia, quefoi a abertura do mercado nos anos 1990. Essa abertura começou nogoverno de Fernando Collor e depois continuou no governo deFernando Henrique Cardoso. Nessa época, cerca de 7 milhões de postosde trabalho foram eliminados, porque começamos a importar em umaquantidade maluca todo tipo de mercadoria. Importávamos desdeursinho de pelúcia até guarda-chuvas, da China, da Coréia do Sul e de outroslugares onde o custo era menor. Foi uma tragédia para ostrabalhadores brasileiros. O desemprego subiu a patamares nunca vistos.Os salários baixaram e também houve mais pobreza. Nesse contexto é quesurge a economia solidária. Ela surge como reação a isso, comoestratégia de sobrevivência. As pessoas precisam sobreviver e surgiramexperiências na época quase desconhecidas. ABr Que experiência lhe chamou mais a atenção nessa época?Singer– Surgiram as empresas cooperadas, que iriam fechar, mas ostrabalhadores conseguiram se juntar e ficar com ela. De empregadospassaram a ser donos. Isso é o sinal mais concreto de que a economiasolidária é uma solução para a crise. Ela evita deixar pessoas sem meiose sem trabalho. Milhares deixaram de serempregados e passaram a terparticipações. Na economia solidária, não há emprego. O que existe éparticipação. Essa é também uma experiência internacional, mas achoque nós, brasileiros, estamos na frente.  ABr Qual a importância da economia solidária no Ministério do Trabalho?Singer– Exatamente por causa dessas empresas cooperadas, quesurgiu diretamente da iniciativa dos sindicatos. Quando há umafalência, os trabalhadores são credores da empresa, seja porque ela não pagou os últimos salários, as contribuiçõespara o INSS [Instituto Nacional de Seguridade Social]. No fundo, ostrabalhadores têm um crédito e, com esse crédito, se candidatam aficar com a empresa e mantê-la funcionando. Todas as empresascooperadas no Brasil, e são muitas centenas hoje, se formaram a partirde iniciativas dos sindicatos. Por isso é que o movimento da economiasolidária faz parte do movimento operário e camponês. ABr O senhor acha que os efeitos da crise no Brasil já estão sendo superados ou essa crise é mais profunda do que se imagina? Singer- Se as pessoas acreditarem que estamos saindo da crise, elas vão agircomo se estivéssemos mesmo já saindo. E aí sairemos mesmo. Esse é umponto que as pessoas, em geral, entendem logo, mas não descobremsozinhas. A previsão faz o futuro. Se as pessoas forem pessimistas, ofuturo será ruim, porque elas vão se preparar para esse futuro ruim. Osmais conservadores estavam exigindo que o governo cortasse gastos. Masse o governo fizesse isso com a previsão de que iria arrecadar menos,iria mesmo arrecadar menos. O governo está gastando por conta. Aarrecadação subiu um pouco, mas o governo está gastando mais. Agora,claramente a economia está se recuperando. As vendas no varejo estãocrescendo, a indústria automobilística bateu recorde em março,mas não ouso dizer que o pior já passou, primeiro porque eu não tenhobola de cristal, segundo, não estou falando como economistaprofissional. Mas acho que a chance é boa. Saberemos disso daqui a algunsmeses.  ABr Em que pontos a economia solidária se distingue da economia capitalista?Singer– A economia solidária tem tudo ao contrário da economia capitalista. Aeconomia capitalista se baseia essencialmente na propriedade privada,de meios de produção, ou seja, as fábricas, os escritórios, asclínicas, tudo tem dono. Esse dono é quem emprega trabalhadores emtroca de um salário e que os trabalhadores façam o que ele manda. Naeconomia capitalista, a empresa está inteiramente a serviço dosinteresses do dono, que é maximizar o lucro. Nem consumidores, nemtrabalhadores têm poder. Quem tem poder é quem tem o capital. Naeconomia solidária não tem isso. Os donos dos empreendimentos são ostrabalhadores ou os consumidores.ABr Mas como isso funciona?Singer– Dois tipos de empreendimentos podem ser formados naforma de cooperativas, mas não necessariamente. No entanto, ocooperativismo foi a forma legal mais fácil de se organizar. Ascooperativas podem ser de produção, que são também chamadas decooperativas de trabalhadores. Nesse caso, não tem patrão. Os próprioscooperados administram o empreendimento de forma coletiva, dividem ocapital entre eles, por igual, e nas decisões que precisam ser tomadas,cada um tem um voto. Esses são os princípios básicos de qualquercooperativa e da economia solidária.  Há cooperativas que fazem suasassembléias enquanto trabalham. Conheço uma em Porto Alegre, a Univens,que vem a ser a abreviação de “Unidas Venceremos”. Trata-se de umacooperativa de costureiras, na qual trabalham 20 mulheres e um homem,que cuida da serigrafia das roupas. Ele não é costureiro e trabalha nooutro andar. É chamado quando elas têm que tomar alguma decisão. Isso ésó um exemplo do que acontece na prática. Isso é só um exemplo deeconomia solidária que produz mercadorias e serviços e quem vende.ABr Como funciona a cooperativa de consumidores?Singer– São pessoas que se juntam para atividades de proveito total deles.Eles não vendem, até compram da sua própria cooperativa o que elaproduz. É o caso das escolas cooperativas. Temos várias no Brasil quetêm como sócios os pais dos alunos. Existe uma escola formadapor funcionários do Banco do Brasil que estavam insatisfeitos com aescola de seus filhos. Eles criaram uma cooperativa que mantém a escola. Temos cooperativas de habitação,em que as pessoas se associam para tercasa própria, algumas vezes trabalhando e produzindo a casa em regimede mutirão, outras vezes, só colocando dinheiro, paraque se possa construir prédios e apartamentos. Existem ainda na área de saúde, com pessoas que se juntampara fazer um plano de saúde. Quem manda é quemusufrui do serviço. Se você entra em um plano de saúde capitalista, vaipagar um valor por mês e o capitalista que administra seu dinheiro vaipegar uma parte para ele, que é o valor pago para ele administrar oplano. Claro que em uma cooperativa quem tem o trabalho de administrarsão os próprios sócios.ABr E os clubes de trocas?Singer– Os clubes de troca são basicamente respostas a situações de crise,falta de trabalho e falta de renda. Os dois casos históricos ocorreramem tempos de crise. No Canadá, um clube de troca ocorreu em uma cidadepróxima a Vancouver na década de 1980. Nessa cidade havia poucosempregadores. Toda a população trabalhava ou em uma base aérea ou naindústria madeireira, que fechou. A população ficou sem qualquer fontede renda. Uma pessoa organizou o clube de trocas para os moradores e,como todo mundo fazia coisas que poderiam ser úteis, o clube funcionou.Eles inventaram uma moeda, e as pessoas conseguiram sair do impasse. Nagrande crise pela qual a Argentina passou em 2001, os clubes foram essenciais porque faltava dinheiro. Foi uma crise terrível. Aspessoas passavam fome, assaltavam supermercados, chegaram a derrubar umgoverno.  Há um cálculo de 6 a 7 milhões de pessoas que foram aoclube de troca para conseguir comida levando o que tinham em casa ou oque se podia produzir. Foi uma verdadeira explosão. Foi muito ruimporque os clubes de troca na Argentina cresciam, tinhamcentenas de milhares de sócios. De repente, essas centenas de milharesde pessoas viraram milhões de pessoas. Daí, perdeu-se o controle ecomeçou a falsificação das moedas sociais. Os preços tambémsubiram porque havia muito mais comprador que produtos. A idéia doclube é que quem compra também vende. São os chamados‘prossumidores’, fusão de produtores e consumidores. Eles devem exerceros dois papéis.ABr Que efeito o clube de troca tem sobre a atividade econômica?Singer– Os clubes de troca foram criados simultaneamente no Canadá e naArgentina. Esses são os primeiros. Mashá registros de cubes de troca oucoisa semelhante no passado, durante a crise dos anos 30. Depois, aidéia se perdeu. O clube cria um mercado ondenão havia nada, inventa uma moeda onde não havia moeda. Com isso, surge uma oportunidade de trocas, trabalho e consumo. Ele,tipicamente, aparece em situações de crise, formado por trabalhadoresautônomos, microempreendedores, cujos fregueses perderam o emprego. As pessoasacabam se conhecendo melhor. Há situações em que pessoas adoecem e ganhamcrédito dos outros que vão continuar fornecendo para ele, mesmo que não possa produzir naquele momento, por estar impossibilitado. ABr Qual o efeito social do clube de trocas? Singer– O que menos se troca são mercadorias. Trocam-seafeição, histórias. O desemprego é horrível porque tiraas pessoas do meio social delas. O trabalho é o lugar onde estão os seusamigos. As Sels (Systémes d'Echanges Local) [como são chamados osclubes de trocas ma França] são associações de pessoas que festejam apossibilidade de interagir. Nesse caso, a moeda social tem um papeleconômico também, mas pelo jeito, menos importante. Ela conseguereincluir no meio social gente que estava isolada. Isso é geral. Não ésó na França. ABr Como funcionam o banco solidário e a moeda social?.Singer– Hoje, no Brasil, estamos desenvolvendo bancos para pessoas muitopobres. Essa é uma criação de uma favela de Fortalezachamada Conjunto Palmares, o BancoPalmas. A moeda social que eles usam para criar crédito chama-se palmas. Uma palma vale um real.  Em Vitória, há também umbanco famoso, chama-se BEM, que funciona no Morro de SãoBenedito. Essa localidade virou um complexo de cooperativas de váriasatividades. Se a pessoa fizer compras nocomércio, colocar gasolina no carro, ela ganha umdesconto para usar a moeda local. Com isso, o dinheiroda comunidade é gasto ali, ao invés de ser gasto fora da comunidade. As atividades comerciais se movimentam. A moeda social é umamoeda, geralmente de papel porque o povo gosta disso. Poderia ser umcartão de crédito, mas o povo acha o cartão muito abstrato. Elesimprimem. Tenho uma coleção de moedas sociais que, ao longo dos anos, fuisendo presenteado. São notas com desenhos e com nomes simbólicos, ou dolocal, como Palmas, tem reais verdes, reais solidários ou somentesolidários,. São nomes que exprimem a ideologia da associação. Amoeda social também é usada em clubes de troca. ABr Por que o uso da moeda em uma relação onde se privilegia a troca?Singer– As pessoas se reúnem e usam a sua moeda para avaliar o serviço e os bens que eles podem produzir. Emgeral, nos clubes de troca, há uma espécie de feira que é muito festiva. É uma festa popular no domingode manhã no bairro. As pessoas seconhecem, isso é importante. Todos mundo leva coisas que todomundo produziu. Mulheres levam pão, bolo e podem trocar por outro bem ou serviço. Se você temum cômodo vazio, pode alugar. Mas a pessoa que aluga pode não ter nadapara você. Então, ele vai pagar com a moeda local, e você poderácomprar alguma coisa que precisa. O banco comunitário tem um âmbito deação mais amplo, e a moeda é usada para proteger e criar um mercado local. Surge uma proteção contra a competição externa que é,geralmente, de empreendimentos capitalistas, supermercados e grandeslojas, por exemplo. ABr Mas como as pessoas têm acesso à moeda no clube de trocas?Singer– Quando elas ingressam no clube, ganham um valor. É um empréstimo, mas enquanto ela estiver no clube ninguém vaicobrar. As transações têm um registro para que os administradorespossam saber que o clube de trocas está funcionando. Quando se aluga oquarto, comunica-se à direção do clube a transação, por quanto foialugado e para quem. O administrador registra isso. Esse registro servepara a direção do clube ter uma idéia de como esse dinheiro está circulando. Se estiver tudo bem equilibrado, esse dinheiro nunca volta para a direção. ABr Mas o que pode colocar em risco o equilíbrio de um clube de trocas?Singer– Podem haver pessoas que nunca compram, só vendem. Ficam acumulandodinheiro. Isso é ruim para o clube porque o dinheiro fica estocado. Apessoa não ganha nada com isso porque não rende juros e os outrosmembros do clube não têm para quem vender.  Nesse caso, cabe até umainterferência. Tem que haver pressão, inclusive, algumas vezes, dandoprazo para era essa pessoa gastar o dinheiro. Acumular dinheiro naeconomia solidária é contra o interesse geral. ABr A busca capitalista pelo acúmulo de capital então não pode funcionar na economia solidária? Singer– O acúmulo de capital pode ocorrer para os integrantes dogrupo, mas não dentro do clube de trocas. Há acumulação quando elescriam, por exemplo, o Palma Fashion, que é uma cooperativade costureiras do Conjunto Palmares que fazem roupas, desfilese conseguem vender sua produção. As costureiras criaram um mercado eestão produzindo. Aí sim, na cooperativa, cada costureira teve queentrar com um valor para que pudessem comprar tecido,linha, máquinas de costura. Nesse caso, há sim acumulação decapital, mas dentro do clube de trocas, não. O que acontece é que secria um mercado onde não havia. ABr Mas, hoje, quem coloca dinheiro nos bancos comunitários?Singer- O Banco Popular do Brasil tem hoje R$ 1 milhão no Banco Palmas, porexemplo. Começou com R$ 50 mil. Na medida em que eles foram vendo o funcionamento do banco, aumentaram os valores.Mas o Banco Popular do Brasil está colocando dinheiro em outros bancoscomunitários, no Espírito Santo, na Bahia. Hoje, existem mais de 40bancos comunitários já funcionando no Brasil inteiro. Esse aporte éfeito em real. Na verdade, o Banco Palmas só emite palmas na medida emque tenha real. Eu sou contra isso. Pessoalmente, acho que isso é umerro porque o Banco Palmas poderia emitir duas vezes o valorem real que não teria problema, na medida em que essa moeda circula. Noentanto, eles fazem questão e, me parece, que isso até faz parte de umacordo com o Banco Central. ABr - E como é a relação desses bancos com o Banco Central?Singer– Os bancos, na verdade, são bancos fantasia. O pessoal do Banco Palmas, por exemplo, estava ativando obanco na sede da associação de moradores. Aí apareceu a recepcionistadizendo que havia dois homens do lado de fora dizendo que queriam ver obanco. Os administradores responderam: que banco? Ofereceram umascadeiras para eles. Eles eram do Banco Central, que queriam saberque banco era aquele, mas nem  sabiam que tinham criado um banco.Enfim, hoje há uma relação entre o BC e o Banco Palmas. Aqui dasecretaria, somos meio intermediários dessa relação. OBanco Palmas tem o nome de banco porque o povo vê isso como um banco,mas não é algo formal. É claro que tem contabilidade, controle social. Os bancoscomunitários são uma espécie de clube de troca  mais amplo. Elespodem receber depósitos. Se o empréstimo é em real, eles cobram juros.Comparando com o Brasil, que tem taxas inacreditavelmente altas, elescobram pouco, cerca de 2% ao mês ou até menos. Isso porque os reaisque eles têm são do Banco Popular do Brasil, que cobra algum juro. Masse o empréstimo é na moeda social, não há juros.