"Não resolvemos a questão central da reforma do papel das Forças Armadas", diz José Dirceu

31/03/2009 - 6h59

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - JoséDirceu de Oliveira e Silva completava 15 dias demaioridade, mas ainda era um adolescente político.Trabalhava em um escritório na Praça da República,no centro de São Paulo, estudava no Colégio Paulistanoe fazia cursinho pré-vestibular.

Tinha acabado de fazer 18 anosquando viu descendo pela Rua da Consolação, vindo daRua Maria Antônia, estudantes do Colégio Mackenziefazendo manifestação em favor do golpe militar de 64. Contra osalunos direitistas, o jovem Zé Dirceu teve certeza de que estavado lado certo, mas jamais imaginou que poderia liderar nos anosseguintes parte da resistência àditadura militar que vigorou por 21 anos.

Passados 45 anos de sua maioridadee do golpe, José Dirceu avalia o período,refuta teses tais como “o AI-5 foi culpa das guerrilhas urbanas”ou que “a luta armada prolongou o regime ditatorial”. Ele reconhece o legado econômico do período, mas avaliaque o país teria se saído muito melhor sob ademocracia.

O ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT),ex-ministro-chefe da Casa Civil dn primeiro mandato do presidente Lulae deputado cassado por seus pares (sob acusação deenvolvimento com o mensalão) analisa que, após quase 25 anos deredemocratização, o país precisa rever o papeldas Forças Armadas e passar a limpo sua históriacontemporânea. A seguir, os trecho principais de entrevista portelefone, concedida no dia 26  deste mês.

Agência Brasil – Nomomento do golpe militar, o senhor já era militante?José Dirceu – A minhamilitância política e um novo mundo que descobriaconteceram quando eu entrei para a PUC [Pontifícia UniversidadeCatólica] para fazer o curso de Direito. Ali começoa militar com amigos do Partido Comunista Brasileiro, fazercineclube, protestar contra o autoritarismo vigente na escola, contraas anuidades, contra o fechamento dos centros acadêmicos, pela associação atlética [da faculdade], contrao recrudescimento da ditadura com a Lei Suplicy [que extinguiu aUnião Nacional dos Estudantes - UNE e as uniõesestaduais de estudantes] e com o Ato Institucional nº 2 [escrito“à nação” e que estabeleceu a suspensão dedireitos políticos e eleiçãoindireta para presidente, além de censura à propagandaconsiderada “subversiva”, entre outras medidas].

ABr – A esquerda fez umaleitura errada dos acontecimentos que antecederam o golpe, avaliandoque poderia haver resistência?Dirceu – O golpe era um golpeanunciado, que tem raízes na Escola Superior de Guerra. Tinhauma avaliação de que haveria tentativa de golpe, masnão houve uma preparação para resistir. Aindaque os norte-americanos estivessem preparados. Os americanos tinhammandado uma frota da Marinha para cá e estavam preparados nãosó para reconhecer os golpistas [como representantes legítimosdo Estado brasileiro], como também para fazer uma intervençãopolítica e militar ao lado deles. Em grande parte, o golpe foifinanciado, articulado e apoiado pelos americanos. Depois disso e atéo governo Geisel, toda política interna e externarefletiu essa ligação carnal com os Estados Unidos. OJuracy Magalhães [ministro das RelaçõesExteriores do governo Castelo Branco, 1966-1967] disse que “o que ébom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

ABr – Qual a piorconseqência do golpe?Dirceu – Evidentemente aditadura em si foi o pior. Há muitosaspectos da política econômica: concentraçãode renda, êxodo rural, empobrecimento das classes populares eendividamento. O que marca a ditadura é a repressão,as torturas, os crimes políticos, os desaparecimentos, acensura, o impedimento de que o país tivesse instituiçõesdemocráticas. Até então, o Brasil em 70 anos deRepública viveu 35 de ditadura. Isso trouxeconseqüências graves para a formação políticae cívica do país. O saldo que a ditadura deixou foitrágico: não só pelos assassinatos e torturas,mas pela cassação dos direitos políticos dosmilhares que foram diretamente cassados como eu, mas de todo o povobrasileiro que não pôde exercer os direitos.

ABr – Na sua vida, a cassaçãoe o exílio foram os piores momentos?Dirceu– O golpe me despertou para a política, assim como aconteceucom milhões de brasileiros. O Brasil não parou delutar. Fizemos questão de manter as ruas na mãodaqueles que se opunham à ditadura. Nós mantivemoscentros acadêmicos abertos e mobilizações dealguns setores contra a ditadura, como os de intelectuais,artistas, professores, jornalistas. Tentamos fazer uma ponte com omovimento sindical que se levantou em 1968, em Osasco (SP). A cassação do meu habeas corpus peloAto Institucional nº 5 foi o pior momento [que o impediu sair daprisão, feita durante o 30º Congresso da UNE, no interior deSão Paulo].

ABr – Por que o movimentoestudantil capitaneou a resistência ao regime militar?Dirceu – Os estudantespertenciam a uma geração libertária que saiu decasa, foi trabalhar e estudar nas grandes cidades sem depender dospais. Foi uma geração avessa ao conservadorismo culturale moral e ao autoritarismo que existia no país. O movimentoestudantil foi mais do que luta contra a ditadura, foi uma revoluçãode comportamento. Isso coincide com um momento de grandestransformações no mundo.

ABr – Olhar isso com umacerta nostalgia não esconde a dureza que foram aqueles anos?Dirceu – Não, a vida éassim, tem muitas facetas, é um arco-íris. A luta nossateve seus momentos de tristeza e dor pelas derrotas, mas teve seusmomentos de alegria e vitória pela criação epelos sonhos.

ABr – A luta armada levouo país ao AI-5?Dirceu – Não. Isso é uma tese sem fundamento que até serve dejustificativa para o golpe. Os atos institucionais nº 1 e nº 2já mostram a natureza da ditadura. Todo golpe tem uma naturezaviolenta porque é uma solução fora da política.Dizer que a repressão teve como causa a resistência àditadura é uma coisa simplesmente inaceitável. Entãonão se pode lutar pela liberdade? Esse tipo de conceito nãocorresponde aos fatos históricos. Ditadura era ditadura.Também foram reprimidos os partidos políticos deoposição. O Partido Comunista Brasileiro, que nãoparticipou da luta armada, também foi reprimido. Não temsentido esse argumento.

ABr – A visãorevolucionária de alguns setores estava equivocada? A visãoreformista do citado “Partidão” talvez fosse a leituramais adequada daqueles momentos?Dirceu – A luta armada tem, emprimeiro lugar, uma justificativa pelo menos moral: é o direitoà resistência, está previsto na carta das NaçõesUnidas, contra a opressão e um governo ilegítimo quenasceu da violência de um golpe militar inconstitucional e seimpôs pela força. Evidentemente que não foi ométodo mais correto. Não soubemos combinar aresistência armada com a luta política e social. Porém,daí tirar a conclusão de que a luta pacífica ou quea resistência institucional poderiam ser bem-sucedidas estáerrado porque elas também foram derrotadas. No processohistórico todos aprendemos, não vejo por que dar toda arazão aos pacifistas ou negar toda a razão àluta armada, apesar do seu caráter militarista.

ABr – Qual foi o maioraprendizado?Dirceu – Que não se podefazer nenhuma luta se não tiver apoio popular e épreciso aprender com a luta. Nós aprendemos isso e exercitamosa partir de 80, muitos fundadores do PT vivemos essa experiênciae soubemos aproveitá-la na vida política.

ABr – Houve acertos no regimemilitar?Dirceu – Evidentemente houveacertos, não é possível governar o paíspor tanto tempo sem crescimento, sem realizações. Opaís mudou radicalmente. O Brasil de 1985 não éigual ao Brasil de 1964. É um outro país, para o bem epara o mal. Caracterizado pela pobreza, perda da soberania popular eausência de instituições democráticas, mastambém com infra-estrutura de telecomunicações,rodoviária, energia, apesar de ter abandonado as ferrovias,não ter desenvolvido a hidrovia, e de a produçãode energia nuclear não ter dado certo. Teve endividamento externo,mas o país criou uma indústria petroquímica, aPetrobras sobreviveu, se constituiu a Eletrobrás, a Telebrás.Não se conseguiu criar uma indústria de TI [tecnologia da informação], mas o país avançou na indústriapesada, de máquinas eequipamentos, apesar de  não ter conseguidoacompanhar o desenvolvimento tecnológico mundial. O Brasilcomeçou a criar as bases para a agricultura e a groindústriaque tem hoje. O saldo absoluto negativo é no social epolítico. No econômico - como o país trabalhou,produziu, acumulou muito e aumentou sua população -, éinegável que houve crescimento, mas nada disso justifica aditadura. Tudo isso poderia ter sido feito com democracia e teriasido feito melhor. Talvez, por exemplo, não teríamosvisto um desenvolvimento urbano tão concentrador, tantafavelização. Talvez a participação dotrabalho na renda nacional teria sido maior, feito a reforma agrária em uma época que teria outroimpacto.

ABr – Que diferenças esemelhanças o senhor apontaria entre aquele projeto dedesenvolvimento e o projeto atual do governo Lula?Dirceu – Nenhuma semelhança.O país é outro, o mundo é outro, não temnenhuma comparação. Não fazemos ocrescimento com base no endividamento externo. O país játem uma base industrial e tecnológica para dar saltos. Oprincipal problema do país é combater a pobreza, adesigualdade, e fazer uma revolução tecnológica eeducacional. Outro problema é fazer a integraçãoda América do Sul, que não estava colocada naquelaépoca. O discurso era chauvinista, de direita nacionalista, até de sub-imperialismo. Não vejo paralelo. Tudo agoraé feito na democracia, naquela época não haviaparticipação da sociedade. Não se pode comparar.

ABr – No governo Geisel, aabertura correu riscos?Dirceu – Claro que correu. Sónão ocorreu  porque as forças que lutavam pelademocracia foram se impondo. A sociedade foi se mobilizando: a Igrejateve um papel importante, o MDB [Movimento DemocráticoBrasileiro, partido de oposição ao regime militar queantecedeu o PMDB], os sindicalistas [que depois vão fundar oPT], os intelectuais, os jornalistas, a imprensa e as camadas populares que selevantaram por melhores condições de vida. O paíscaminhou para a democracia resistindo e lutando. Senão, nãoteria saído da ditadura. A democracia não é obrada distensão e nem dos militares, ela é obra de quemlutou.

ABr – Por que o Brasil temtanta dificuldade de passar essa história a limpo?Dirceu – Porque nós nãoresolvemos uma questão central que é a reforma e arevisão do papel das Forças Armadas no país. Foicriado o Ministério da Defesa, mas ele não estáconsolidado. Nunca os militares abriram mão de autodefiniras suas políticas. Nunca o Congresso Nacional avocou isso para si, o que significa que a sociedade não avocou para si.Existe um capítulo não encerrado, como acontece emoutras casos. Precisamos, por exemplo, fazer uma reforma políticae não deixar que o poder econômico, a cada dia, controlemais a política, e a política dependa do dinheiro. OBrasil não acertou as contas com a sua própriahistória.