Julio Cruz Neto
Repórter da Agência Brasil
Brasília - O presidente Evo Morales realizou ontem (14) a segunda reunião com prefeitos departamentais (equivalentes aos governadores brasileiros) para tentar resolver a crise política do país, dividido entre uma Constituição que vários departamentos renegam – aprovada em Assembléia e ainda pendente de referendo popular – e os estatutos de autonomia considerados ilegais por La Paz.Para obter um panorama da situação e entender melhor os argumentos das forças políticas que se enfrentam no país, a Agência Brasil ouviu dois constituintes: Rubén Darío Cuellar, chefe da bancada nacional do Poder Democrático Social (Podemos, principal partido da oposição), e Carlos Romero, do Movimento ao Socialismo (MAS, partido de Evo Morales).Cuellar disse que o MAS, por ter maioria na Assembléia Constituinte, determinou a agenda e não incorporou de fato a autonomia dos departamentos, que então elaboraram estatutos autonômicos. O governo, como resposta, propôs mais níveis de autonomia, incluindo a indígena, diz ele. “Nós sempre defendemos que a [autonomia] municipal deve ser mantida e a departamental, implementada, porque o resto é fracionar, fraturar os territórios e agravar o conflito que vive o país”, afirmou o constituinte.Leia os principais pontos da entrevista. A outra, com o político governista, será publicada posteriormente.Agência Brasil: Você não acha que o fato de garantir autonomia para territórios indígenas é algo bom para esses povos?Ruben Dario Cuellar: Não. Nós reconhecemos o direito dos povos indígenas e achamos que o município onde vivem indígenas deve ser reconhecido como município autônomo. O que não estamos de acordo é com a tese do MAS da reconstituição ancestral de territórios, ou seja, que os habitantes que viviam aqui antes da fundação da Bolívia e seus descendentes reconstituam os territórios que tinham antes da República, antes da colonização. Deixaríamos de ser Bolívia e seríamos uma confederação de nações indígenas, porque evidentemente, a totalidade do território esteve ocupada, de uma ou outra forma, por povos originários. Por outra parte, os habitantes dos povos originários propriamente ditos não são mais de 7% da população.ABr: Os índios são apenas 7%?Cuellar: Se você revisar os dados do censo indígena nacional, vê que os habitantes originários não chegam sequer a 7%, são seis e alguma coisa. Mas o MAS diz “não, não só os aborígenes por sangue, povo e tradição, mas todos aqueles que se autodeclaram como pertencentes a um povo [devem ser considerados originários]”. Então, se amanhã você vem viver na Bolívia e se autodeclara como do povo Leco ou Chiman, tenho que considerar você como originário. Por isso o governo diz que 65% ou 67% da população é originária. Mas não é. É tão criolla, tão mestiça como eu, como qualquer cidadão. (...) É uma manipulação política do governo, com o único objetivo de romper um modelo de desenvolvimento para onde o Oriente aponta, de geração de excedentes e indústria sob um liberalismo econômico, puro e simples. Temos um governo que propõe uma forma de comunitarismo, recorrendo às teorias de Toni Negri [filósofo marxista italiano] de que o comunismo deve ser substituído pelo comunitarismo. É uma forma de coletivização da produção, mas a variante é que concentra todo o poder de decisão nas mãos do presidente e seus aliados. O que se tenta implantar é o neoindigenismo, um processo autoritário de poder.ABr: Mas com os índices sociais da Bolívia, não é necessário fazer algo para mudar isso, além de desenvolvimento econômico? Garantir certo nível de assistência social? Esse governo não tenta fazer isso?Cuellar: É um pretexto. Esse governo já tem mais de dois anos e não elaborou um plano de geração de emprego, um plano para desenvolver o país, a não ser a tese do viver bem, que diz que a única forma de evitar a desigualdade é que todos tenhamos o mesmo. O esforço que fez um boliviano para comprar uma casinha, um pedaço de terra deve ser anulado porque a única forma de evitar que as pessoas se sintam mal é que todos vivamos numa comunidade. É uma forma de comunitarismo primitivo, porque voltar a viver como viviam... supostamente, porque se trata de uma suposição... os povos originários da América há mais de 500 anos é a política mais reacionária que se pode enfrentar. (...) Na Bolívia, temos um sério problema de redistribuição de renda. 5% da população vive com 95% da renda. Essa é uma situação insustentável e todos temos que lutar para mudá-la. Mas acontece que no melhor momento econômico da Bolívia, em que os preços dos seus principais produtos duplicaram, triplicaram, quadriplicaram, temos um governo que não faz nada para aproveitar isso, não gera fontes de emprego, não gera maior produção.ABr: E quais são os...Cuellar: Nossa produção nacional de hidrocarbonetos, da agroindústria caiu porque não há nenhum incentivo. A Petrobras decidiu sair do país porque o governo coloca todo tipo de entrave e não garante o retorno do investimento. Claro que o contrato deve ser revisado se não for justo, como o de qualquer empresa, mas não podemos espantar quem está trabalhando, deixar de trabalhar com empresas petroleiras como Petrobras, Repsol, Total Fina, British Gas para trabalhar com a PDVSA, da Venezuela. Não sei qual o benefício, se da mesma forma é uma empresa estrangeira.ABr: A nova Constituição tem cinco artigos sobre a autonomia departamental. Eles não comportam as reivindicações nesse sentido? Quais são elas?Cuellar: Claro que o MAS [partido do governo] aprovou uns artigos, mas a condição fundamental da autonomia é a descentralização do poder, a possibilidade de legislar sobre questões fundamentais como educação, saúde, terra, território. O MAS não entrega isso aos governos departamentais. Ao contrário, dá autonomia territorial aos indígenas, criando uma diferenciação. Só dá autonomia de deliberação. O que nós pedimos, e votamos, é a descentralização política, é poder legislar para além da administração dos serviços. Na Bolívia, quando falta um professor numa região mais isolada, cabe ao Ministério da Educação dizer se é para colocar um substituto ou não. (...) O governo sabe que com isso perderia poder, porque faz política através do sindicato dos docentes. O mesmo acontece com saúde, com desenvolvimento produtivo... É necessário dar oportunidade econômica às pessoas, mas planificando [a administração] desde o governo central nunca vamos conseguir. (...) É uma ineficiência...ABr: Você acha esse governo mais ineficiente que os anteriores, que deixaram a Bolívia chegar ao nível crítico atual?Cuellar: A Bolívia está como está porque houve ineficiência em todas as administrações na tentativa de melhorar a situação, mas quando você pergunta aos ex-governantes, um diz que enfrentou uma grave crise econômica, outro que caiu o preço internacional do estanho... O problema é que agora que nossos produtos valem muitíssimo e estamos produzindo menos. O volume de dinheiro que ingressa é maior porque o preço subiu, não porque aumentou a capacidade produtiva. Estamos desperdiçando uma oportunidade extremamente favorável. Outra coisa é que o crescimento do PIB não chega a 4%. Esse ano, estima-se que vamos crescer apenas o equivalente ao crescimento da população, quando poderíamos crescer 9%, 10%. Não há um afã produtivo nesse governo. O Brasil nesse momento precisa de gás, a Argentina, o Chile, mas não temos produção. Estamos nos destruindo.ABr: Você, como chefe de bancada nacional do principal partido de oposição, também boicotou as duas reuniões da Assembléia Constituinte que aprovaram a nova Constituição?Cuellar: Não nos deixaram participar.ABr: Não foi uma decisão de vocês, um protesto?Cuellar: Decidiriam fazer a primeira sessão num quartel em Sucre, cercado por policiais, militares e milicianos do MAS, para evitar a presença da oposição. Nós só representamos 24% da Constituinte, então não temos possibilidade de vetar nada, porque não chegamos a dois terços. O Movimento ao Socialismo nunca quis discutir abertamente os temas de seu projeto, porque não tem argumentos. Um projeto que o povo não quer. Primeiro se trancam, entre fuzis e baionetas, num quartel. Não hesitam em acabar com vidas humanas que iam pedir pela nossa presença. Matam três pessoas em Sucre [saldo de fatalidades da primeira reunião, que resultou em pancadaria, depredações e mortes] e em seguida convocam uma sessão em Oruro [quando o texto foi aprovado ponto a ponto], sem cumprir nenhuma norma.ABr: Não é verdade então dizer que a oposição boicotou a Constituinte?Cuellar: Não. O que a oposição tenta fazer é impedir a implementação de um texto que não foi discutido, sobre o qual não há consenso.ABr: Tampouco é certo dizer que a oposição quis deixar o tempo-limite de funcionamento da Assembléia (um ano) se esgotar para que o texto não fosse aprovado e nada mude no país?Cuellar: Isso é uma mentira muito grande. Nós fizemos campanha para que as pessoas acreditem num projeto de Constituição. Com base nisso, as pessoas votaram em nós [para formar a Assembléia]. Nós temos 26%, o MAS tem 60%. Eles não precisam de ninguém para convocar reunião. Quem evitou discutir propostas foi o MAS (...) Eles mudam a regra do jogo toda hora. É um exercício ilegal, um projeto manchado de sangue.