Mylena Fiori
Repórter da Agência Brasil
São Paulo - Um manifesto assinado por diversos intelectuais de esquerda acompanhou o lançamento oficial do Partido Socialismo e Liberdade (P-SOL), em São Paulo, na última sexta-feira. Assinam o documento, elaborado pela economista Leda Paulani, pensadores como os sociólogos Francisco de Oliveira e Ricardo Antunes e os filósofos Paulo Arantes, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder.
O P-SOL foi fundado em junho passado, por 750 representantes de 22 estados reunidos em Brasília. O lançamento do partido na USP contou com a presença da senadora Heloisa Helena, presidente do partido, dos deputados federais Luciana Genro (RS) e Babá (PA), e de diversos intelectuais fundadores do P-SOL. Os parlamentares aproveitaram a presença de cerca de 500 estudantes, militantes e funcionários da universidade para dar impulso à campanha de legalização do P-SOL.
"A criação do P-SOL parece-nos uma iniciativa de importância singular. Ela viabilizará a tentativa de desentranhar o novo, o utópico, o impensável do velho, do mundo político caquético, das desgastadas formas de democracia representativa. Um partido radicalmente novo, que combine liberdade e democracia, cuja síntese é o socialismo", diz o manifesto. "Estaremos contribuindo para impedir que o país continue a se atolar na barbárie capitalista; estaremos evitando que morra de vez o sonho de um Brasil justo, digno e socialista", conclui o documento.
Atualmente, o P-SOL tem apenas registro provisório e não poderá participar das eleições municipais de outubro deste ano. Por exigência da nova Lei Eleitoral, a criação do novo partido depende da obtenção de 438 mil assinaturas de apoio – até agora foram coletadas 60 mil em todo o país (não se trata de filiações, mas de assinaturas de apoio à existência do partido).
Em paralelo à campanha pela legalização, o partido organiza-se em núcleos nos municípios e estados, já com foco nas eleições presidenciais de 2006. Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, o filósofo Paulo Eduardo Arantes, um dos fundadores do P-SOL, fala sobre a participação histórica dos intelectuais na política do país e sua relação com a esquerda. Leia a seguir os melhores trechos da entrevista.
Agência Brasil - Por que a escolha da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP para a apresentação do novo partido?
Arantes - A FFLCH foi concebida por um grupo de intelectuais paulistas ligados à família Mesquita, para se contrapor a Getúlio Vargas. Foi uma revanche da oligarquia paulista à Revolução de 30 – pela educação, São Paulo reconquistaria sua supremacia perdida. Fundada em 1934, junto com a USP, a faculdade contava com professores franceses e se propunha a "desprovincianizar" e equipar a oligarquia paulista com instituições culturais nos moldes europeus.
No entanto, por força de um decreto providencial, a faculdade passou a ter como alunos professores comissionados de classe média baixa do interior, o que provocou uma revolução cultural e política. A partir desse momento, constitui-se uma tradição de modesto radicalismo e a FFLCH acabou se transformando em um canteiro de produção de intelectuais de esquerda. Formou a primeira geração de intelectuais universitários que vão pesar na política do país.
Tivemos oito anos de um governo tecnocrata – o de Fernando Henrique Cardoso –, cuja legitimidade, para a mídia, vinha do fato de o presidente ser da USP e ter majoritariamente intelectuais em quadros técnicos superiores. Isto se completou com o PT, formado no auge da intervenção pública dos intelectuais, nos anos 70, como nunca se viu desde a luta final contra o Estado Novo. Lançar O P-SOL na USP seria um bom teste para ver até onde vão e como estão os professores da FFFLCH, que sempre foram exceção. E, das cerca de 500 pessoas que compareceram ao lançamento do partido, havia no máximo 20 professores. Estavam lá estudantes, militantes, funcionários...
ABr - O que isso significa historicamente?
Arantes - A apatia , a desmotivação e a desmobilização já vêm desde a assim chamada Nova República. As únicas duas grandes mobilizações da USP foram as greves em 1979, contra Paulo Maluf, e em 2000, contra FHC e Mário Covas.
O lançamento do P-SOL valeu como contraprova. A USP já era maciçamente pró-establishment na época do Fernando Henrique. Com o PT, completou-se o quadro. Mas é um pró-establishment completamente desideologizado, porque é pragmático e diz respeito à privatização interna da USP. A USP como corpus crítico, de produção de conhecimento no sentido social do termo, conta pouco.
ABr - O que diferencia o P- SOL dos demais partidos de esquerda?
Arantes - O diagnóstico de César Benjamin (cientista político) é interessante. Ele diz que a esquerda no Brasil teve dois grandes ciclos, o da hegemonia do Partido Comunista e o do PT, e o que temos diante de nós é o fim do ciclo do PT. Mas, ele não faz uma reflexão importante. Em meados dos anos 90, quando a Convergência fundou o PSTU e foi criado o movimento Consulta Popular, o diagnóstico deles era o seguinte: o PT se burocratizou, vai se degenerar e temos que preparar uma estrutura partidária alternativa para acolhermos a esquerda quando esse desastre acontecer – ou na forma de movimento social, como a Consulta Popular, ou na forma de um partido leninista clássico, como o PSTU. De fato eles acertaram, mas não previram que o PT chegaria ao poder.
Assim, o conteúdo do P- SOL se resume hoje praticamente à circunstância em que ele nasceu. Uma circunstância que não foi prevista por aqueles que se anteciparam imaginando que o PT iria se degenerar no meio do caminho. Quando refletimos sobre o que deve ser uma esquerda no Brasil hoje, temos que contar com o dado de que um partido que foi social-democrata ou socialista no sentido europeu finalmente chegou ao poder e, como os socialistas europeus, se tornou também neoliberal. O consenso é neoliberal como foi o consenso neokeynesiano na Europa – qualquer que fosse o partido, liberal ou social democrata, aplicava políticas mais ou menos semelhantes no pós-guerra europeu.
O P-SOL está condenado a ser coisíssima nenhuma se imaginar que a situação brasileira é igual à européia e que, como na Europa, temos que ter um partido de extrema esquerda só para completar o espectro político clássico. O Brasil não comporta isto, tem que ser uma coisa nova, como foi o PT, em certo sentido.
ABr - Qual é a motivação dos intelectuais envolvidos na criação do P-SOL?
Arantes - O Chico de Oliveira (sociólogo, professor da USP) diz que o conteúdo inicial deste partido é uma opinião pública perplexa com a reviravolta do PT. O P-SOL é uma iniciativa de extrema esquerda, por enquanto meramente reativa, dos parlamentares ao trauma que é a conversão do PT à "ordem". Como aliados, os parlamentares contavam com corpos técnicos do Estado altamente qualificados, como os auditores da Receita Federal, técnicos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Banco do Brasil, Banco do Central, economistas que têm função no Estado, mas que são antineoliberais, pois são pós-keynesianos... É para esse pessoal que o partido se destina no primeiro momento, paradoxalmente.
Só que aconteceu uma coisa diferente. Durante o processo de expulsão dos parlamentares, que durou um ano, convocaram muita gente para ser testemunha de defesa – entre eles, os intelectuais. Na época disseram que queriam formar um partido e nossa reação foi "partido nunca mais, acabou, está fora de cogitação".
Até que um de nós, não lembro quem, acho até que fui eu, disse o seguinte: eles vão fazer o partido, com ou sem a gente. Temos todas as objeções do mundo a um novo partido, mas desconfio de que vamos ficar fazendo seminários para definir a natureza do socialismo, publicando artigos interessantes, editando revistas e discutindo isso eternamente.
O mérito desse pessoal é de que tomaram uma decisão. Se ninguém tomasse essa decisão, íamos ficar até 2006 apenas falando mal...
ABr - Qual será a relação do P-SOL com a tradição intelectual brasileira?
Arantes - Ninguém sabe. É possível dar um palpite a partir da reflexão sobre o que ela foi nos ciclos comunista e petista. Antes do PT, quando o imaginário bolchevique foi hegemônico, a história tinha um sentido, a revolução proletária era uma questão de oportunidade e decisão, e os intelectuais ou aderiam a este sentido ou eram enquadrados por ele. Basta ver a relação do poeta Carlos Drummond de Andrade com o Partido Comunista. Era um drama terrível: ou você aderia ou se sentia um verme, uma pessoa desfibrada que não tinha o sentido da história circulando pelo seu sangue.
Com o PT, foi diferente, e o partido se beneficiou de várias circunstâncias. Primeiro, a desmoralização da linha justa a partir de 1964. Depois veio a luta armada e ficaram de fora. Nos anos 70, fizeram uma política de frente única que deu no MDB, mas aí os intelectuais começaram a pesar de maneira independente do Partido Comunista – na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), nas universidades. O PT sai daí – do novo sindicalismo, os movimentos de base da Igreja e os intelectuais mobilizados contra a ditadura dos anos 70. Nasce para ser anti-stalinista, portanto, não vai enquadrar intelectual.
Foi algo inusitado, um alívio de parte a parte, ninguém interferia na vida de ninguém. Nenhum dos grandes intelectuais, que entraram em massa no PT, precisou abdicar de nenhuma convicção – ao contrário dos partidos bolcheviques, que tinham o sentido da história. Por outro lado, não influíram em nada. Pararam de pensar politicamente. Eram militantes disciplinados. O PT formou uma nova geração de intelectuais – técnicos públicos que fabricam um consenso que articula o funcionamento da economia e da sociedade, as políticas públicas. São universitários, tecnocratas, competentes e que não são fisiológicos, mas não percebem que estão seguindo exatamente a cartilha do Banco Mundial e do FMI.
O P-SOL não tem isto, tem malucos avulsos como o Chico de Oliveira e eu... O problema, para viabilizar o P-SOL ou qualquer outra iniciativa política, é criar um novo tipo de intelectual. Se não aparecer, vai ficar meia dúzia de cerejas em cima do bolo deles...