Milagres (BA), 14/8/2004 (Agência Brasil - ABr) - Escondido entre as belezas do estado da Bahia, está um lugar ainda não freqüentado pelos turistas, mas descoberto há 46 anos pelo cinema brasileiro. A pousada fica no posto de gasolina e o restaurante na parada de ônibus. Assim é a cidade de Milagres, situada entre montanhas e rochas, a 320 km de Salvador. Esta semana, a cidade viveu um dia atípico. A tranqüilidade das 13 mil pessoas que moram na região foi quebrada com o lançamento do Programa Revelando os Brasis, do Ministério da Cultura.
O programa vai viabilizar a produção de 40 curtas-metragens. A idéia é possibilitar às pessoas que não vivem nos grandes centros também produzir cinema e não apenas assistí-lo. Todos os municípios brasileiros com até 20 mil habitantes podem participar. Para se inscrever, basta ter uma história, real ou fictícia. Os autores das 40 melhores histórias selecionadas participarão de um curso no Rio de Janeiro, onde aprenderão a desenvolver o roteiro. Em seguida, retornam à cidade, para a filmagem do vídeo. "Os filmes mostrarão a realidade de cada local e serão feitos por gente que está começando e não tem recursos", afirma o ministro da Cultura, Gilberto Gil.
Durante a festa realizada para o lançamento do programa, a atriz Maria Gladys foi cercada por crianças e fãs que queriam um autógrafo e também poder ficar perto dos ídolos famosos da TV. A atriz participou do filme "Os Fuzis", de Ruy Guerra, rodado em Milagres, em 1964. Para ela, o programa "vai dar oportunidade para todos os Brasis, todos os lugares e pessoas que querem fazer cinema e estão escondidas".
Considerado o "descobridor" da cidade, Nelson Pereira dos Santos foi o primeiro cineasta a filmar em Milagres, com a série Rio-Bahia, em 1958. Depois dele, também filmaram Ruy Guerra, Glauber Rocha, Aurélio Teixeira, Fernando Belens, o italiano Gianni Amigo e Walter Salles. Algumas das cenas de Central do Brasil foram feitas nas ruas de casas coloridas com enormes montanhas ao fundo, que formam a paisagem rochosa e o cenário natural de Milagres.
A atriz Odete Lara, que trabalhou em "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", de Glauber Rocha, se alegra com as recordações e estrepolias cometidas, em 1960, durante a produção do filme. "A equipe comprava passarinhos dos habitantes de Milagres para levar ao Rio de Janeiro. Uma noite, soltei todos os passarinhos. No dia seguinte, pela manhã, foi terrível. Eles queriam pegar o cara que tinha feito aquilo e eu fiquei quietinha. Só foram saber, muitos anos depois, quando contei essa história em um dos meus livros", conta a atriz.
Não são apenas os atores que guardam boas lembranças. Grande parte dos moradores de Milagres já foi figurante em algum filme. Seu Dionísio Mendes, um lavrador aposentado, se orgulha de ter trabalhado em quatro produções e não se esqueceu da ajuda que recebeu da equipe de "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro". "A situação estava difícil na lavoura. Quando a equipe do filme foi embora, me deu vários presentes. Colchão, mesa e um relógio banhado a ouro, que vendi. Com o dinheiro pude comprar uma máquina fotográfica lambe-lambe e trabalhar nos finais de semana", recorda-se.
Quem também não se esquece das filmagens na cidade é o motorista Antonio Paulo. Ele conta que era estudante na época em que "O dragão" foi filmado. A merenda escolar era a mesma diariamente, um "puxa", que o dinheiro dava para comprar. A produção do filme de Glauber Rocha dava todos os dias um sanduíche e um refrigerante de lanche. "Foi a primeira vez na vida que comi um sanduíche", lembra Paulo. "E não era qualquer sanduíche, era sanduíche com salame", ressalta.
Agora, 46 anos depois de ter filmado na cidade, Nelson Pereira voltou a Milagres para fazer um documentário, que recebeu o nome de "Cidade Milagres". A diferença é que nele, os moradores da região não são os figurantes, mas sim os protagonistas. Por meio de 29 depoimentos, o documentário conta histórias e curiosidades de filmes anteriores feitos na cidade, tipicamente interiorana, com forte tradição religiosa. Nossa Senhora dos Milagres é a santa que dá nome à cidade. Entre as histórias, a mais contada é sobre um vaqueiro que teria caído da montanha. Durante a queda, pediu proteção à santa. O cavalo morreu e o vaqueiro nada sofreu.