Especial - Plínio de Arruda Sampaio alerta para risco de guerrilha no campo

06/05/2004 - 12h58

Leonardo Stavale
Repórter da Agência Brasil

São Paulo - As ocupações de terras deverão ser intensificadas, como forma de pressionar o governo a acelerar os assentamentos. A previsão é do ex-deputado federal constituinte Plínio de Arruda Sampaio, que também é promotor público e consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, além de professor universitário e coordenador da equipe responsável pelo esboço do atual Plano Nacional de Reforma Agrária.

Nesta entrevista, Sampaio critica a revisão da meta de assentamentos, de 1 milhão para 520 mil famílias em quatro anos, em função da escassez de recursos. E afirma que a reforma agrária está sendo "empurrada com a barriga" há 160 anos. Por isso, faz um alerta: se prosseguirem os obstáculos à implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária, o Brasil corre o risco de ter uma guerrilha no campo, a exemplo do que ocorre na Colômbia.

A seguir, a íntegra da entrevista:

Agência Brasil - O senhor participou da formulação do Plano Nacional de Reforma Agrária para o governo Lula. Na sua visão, qual é a reforma agrária de que o Brasil necessita?

Plínio de Arruda Sampaio - A nossa equipe achou que a reforma agrária precisaria assentar pelo menos 1 milhão de famílias, para ter um verdadeiro impacto. Agora, o governo não tinha recursos, por causa deste superávit primário de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim, a meta foi reduzida para 520 mil famílias em quatro anos, o que sem dúvida reduz muito o impacto do Plano.

ABr - Qual é o seu sentimento em relação ao presidente Lula e ao PT sobre a questão agrária?

Sampaio - Eu estou muito preocupado, tanto com o PT quanto com o governo Lula, porque já passou tempo demais para sentar na sela. Já está na hora de tocar o cavalo, de começar a fazer as coisas. Fiquei aborrecido com a redução da meta, que foi calculada com o maior cuidado, verificando a existência de pessoas necessitadas e de terra abundante. Também foi verificada a possibilidade de dar três salários mínimos e meio para essas famílias, o que é uma coisa formidável e com um gasto que não é fora da base – ele passa por cima das metas fixadas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), mas o governo brasileiro precisa assumir que precisa negociar mais duro com o FMI.

ABr - Qual a sua avaliação da atual política agrícola?

Sampaio - A política agrícola apóia um modelo que é muito ruim, muito nocivo ao país, e esse "oba-oba" que fazem com o agronegócio, dizendo que ele resolve tudo, isso é
uma falácia. De fato, a agricultura moderna – os grandes proprietários que fazem parte dessas cadeias produtivas comandadas pelas multinacionais tipo Parmalat, Nestlé, Cargill – sem dúvida abastece o mercado, exporta pra burro, e isso é positivo. Favorece a introdução de técnicas modernas de cultivo que aumentam a produtividade da terra, isso é inegável. Por outro lado, essas empresas são uma fábrica de pobreza, inviabilizam a agricultura familiar, que é a imensa maioria das unidades agrícolas do país. Elas não empregam porque usam tecnologias que não usam quase força de trabalho, agridem a natureza de uma forma espantosa e aumentam a vulnerabilidade do nosso país. Isto porque dependemos de técnicas que não produzimos aqui dentro, que não somos capazes de fazer. É um modelo que precisa ser modificado.

ABr - O PT, assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi muito crítico em relação à política do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na sua opinião, de lá para cá houve mudança expressiva?

Sampaio - Não há dúvida de que houve, sim. O período anterior queria fazer a famosa reforma agrária de mercado, ou seja, uma contrafacção da reforma agrária, porque o mercado nunca fará uma reforma agrária. É uma pena que o governo não tenha tido condições de bancar o gasto de colocar 1 milhão de famílias, porque aí, sim, ele faria uma grande alteração na vida econômica do País. Para se ter uma idéia, só com 1 milhão de assentados poderiam ser gerados 3,5 milhões de empregos, o equivalente a 35% da meta estabelecida na campanha do presidente Lula. Nessa questão, a diferença é que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso considera a reforma agrária um assunto completamente ultrapassado. No entender dos teóricos da era FHC, era uma plataforma histórica que perdeu o seu momento. Para o governo Lula, a reforma é vista como uma necessidade do momento.

ABr - Quanto à postura de movimentos populares como o MST em relação a esses dois governos, o senhor considera que houve mudança? Existe maior pressão agora pelo fato de o presidente Lula sempre ter ficado ao lado desses movimentos?

Sampaio - Sem dúvida. Um era um governo adversário, contrário ao movimento social. E este não é um governo contrário. É um governo que precisaria ter um pouco mais de força, um pouco mais de coragem, isso sim. Mas é um governo favorável.

ABr - Durante o governo FHC, a Folha de S. Paulo, por exemplo, publicou diversas matérias mostrando que o governo fazia uma reforma agrária, mas não dava subisídios para as famílias poderem se sustentar nos assentamentos. Isto acontece no governo do Lula?

Sampaio - A informação que foi dada ao público é corretíssima, era isso mesmo que acontecia. Neste aspecto, o plano que a gente propôs foi totalmente aceito. Recuperar esses assentamentos e assentar as famílias com recursos suficientes para que de fato consigam obter uma renda digna para poder viver, uma renda que tem de ser acompanhada de algum auxílio da seguridade social, que permita três e meio salários mínimos por família. Isto está sendo religiosamente cumprido.

ABr - Como o senhor observa o diálogo do governo com o MST e os movimentos paralelos?

Sampaio - Até agora está bem. Evidentemente que nenhum governo gosta de ver pessoas fazendo atos de protesto, atos que ficam mais ou menos na divisa entre o legal e o ilegal. O governo fica preocupado, mas até agora não reprimiu nem adotou qualquer atitude parecida com as que tiveram o ministro Raul Jungmann e o presidente Fernando Henrique em relação ao MST.

ABr - Após quase um ano e meio de governo, o senhor acredita que a pressão desses movimentos pode aumentar?

Sampaio - A tendência é, certamente, crescer. E já estamos vendo isso. A reforma agrária, na verdade, nunca é dada por alguém. É o resultado de uma pressão camponesa. Se essa pressão não existir, ninguém faz reforma agrária, porque as forças contrárias são enormes e é preciso vencê-las. E só o povo organizado tem condições de vencê-las.

ABr - A saturação nas cidades faz com que as pessoas ingressem em tais movimentos e voltem a migrar para o campo?

Sampaio - Esta análise é corretíssima. A cidade não absorve mais a população marginal. Ela não recebe mais imigrantes do campo e está expulsando quem não consegue um lugar, nem embaixo da ponte. O capitalismo já havia penetrado no campo por meio da modernização feita pelos militares. E, portanto, não havia mais lugar para uma reforma agrária. Veja a concepção do agronegócio. A quem interessa? Interessa a multinacionais que exploram a coisa agrícola. Mas não interessa à massa rural e não interessa ao povo brasileiro. Isso é o que é mais importante.

ABr - A existência de vários movimentos de luta pela posse da terra não enfraquece as chances de uma reforma agrária mais ampla? Não seria mais produtivo uma centralização?

Sampaio - Ao contrário, a diversidade é um sinal de agitação que está no meio rural. Eu tenho dito e repetido que se a elite brasileira novamente bloquear a reforma agrária e impedir que ela seja feita, essa mesma elite vai amargar, amanhã, uma situação colombiana. Quando agridem o MST, essas pessoas estão dando um tiro no pé. Se o MST for desmantelado ou ficar numa situação difícil, não tenha dúvida de que esses movimentos todos vão evoluir para posições até aventureiras e isso terminará num guerrilha rural. O MST é quem civiliza a luta, é quem faz a luta ser civil, sem armas e sem violência. Eles não matam ninguém e não ferem ninguém. Se não tiverem êxito, não há dúvida de que outros farão a luta de uma forma perniciosa para o País.

ABr - O MST está completando 20 anos. Que balanço o senhor faz dos aspectos positivos e negativos desse período de atuação?

Sampaio - Em relação ao MST, a palavra definitiva foi dita pelo Celso Furtado (economista e ex-ministro do Planejamento do governo de João Goulart, autor do livro "Formação Econômica do Brasil"), que o considera um movimento civilizatório de uma importância tão grande quanto a campanha abolicionista. Para o Celso Furtado, o MST é o movimento mais importante do século XX no Brasil. Conhecendo bem o MST, eu acrescento que ele teve um impacto não apenas nos sem-terra, mas em toda a sociedade, porque mostrou que o pobre pode se organizar por conta própria e fazer as suas conquistas. Isso é um salto de qualidade imenso na luta política do País.

ABr - Os meios de comunicação costumam cobrir apenas as ações do MST. Na sua opinião, por que isso ocorre? Como o senhor vê a cobertura da mídia sobre a questão da terra?

Sampaio - Há uma mídia que dá uma cobertura correta, mas é uma mídia evidentemente ideologizada, cuja cobertura é na verdade uma maneira de atacar, isso é inegável. Agora, por que cobrem mais o MST? Porque ele faz as maiores ocupações. Os outros movimentos não têm nem fôlego para fazer uma ocupação de mil ou duas mil pessoas. Ou fazer uma marcha como, por exemplo, o MST fez agora no Paraná: 5 mil pessoas numa sala de aula, um galpão imenso, inacreditável.

ABr - O senhor tem esperança de que algo de significativo e expressivo possa ser feito em termos de distribuição de terra até o fim do mandato do presidente Lula?

Sampaio - Se tiver vontade política, se realmente o governo se conscientizar de que está seguindo um caminho errado e de que precisa pôr mais peso na reforma agrária, há tempo, sim. Eu escrevi um artigo dizendo o seguinte: "Na vigésima-quinta hora, as pessoas só recolhem os cacos; até a vigésima-quarta dá para fazer alguma coisa".