Especial Diretas 3 - Ricardo Kotscho: o cronista da mobilização popular

23/04/2004 - 8h54

Deigma Turazi
Repórter da Agência Brasil

Brasília - Hoje secretário de Imprensa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o jornalista Ricardo Kotscho afirma não ter vocação para cobrir temas econômicos e políticos, principalmente quando o trabalho se restringe aos gabinetes. Por isso optou há mais de 30 anos pela atuação junto aos movimentos sociais, o que possibilitou a ele cobrir integralmente a campanha das Diretas Já, entre 1983 e 1984. Viajou pelo país para registrar desde as primeiras até as chamadas megamanifestações pelo direito à eleição, no voto direto, do presidente da República.

A experiência foi relatada no livro "Explode um novo Brasil", em cujo prefácio o deputado Ulysses Guimarães, que dividiu com o então líder sindical Lula a responsabilidade de coordenar a mobilização popular, afirma: "Kotscho não se absorve nas estrelas do acontecimento. Sua pena é também alto-falante da multidão, assegura-lhe o papel de personagem no grande e terrível drama social brasileiro". Repórter da Folha de S. Paulo, o secretário é chamado de "cronista das diretas".

No dia em concedeu esta entrevista, Kotscho estava sem paletó nem gravata, em seu gabinete no 1° andar do Palácio do Planalto. O presidente Lula viajara ao interior do país. E o secretário avisou, logo no começo, que sempre foi muito emotivo, apesar da recomendação de que o jornalista "não deve se emocionar, se envolver com os fatos".

A seguir, trechos do depoimento de Ricardo Kotscho:

Campanha

"A campanha das diretas foi um pouco o resultado das lutas dos movimentos populares, dos movimentos sociais ligados à Igreja, da luta pela pela anistia, pela redemocratização do país, tanto é que os comícios pelo Brasil inteiro eu encontrava pessoas com quem eu tinha feito matérias antes, o pessoal da luta pela terra, da luta pelas demarcações das terra indígenas, de todas as lutas sociais brasileiras que vinham desde a década de 60 e 70 e acho que desaguaram nesse grande movimento que foi a campanha das diretas. Foram poucos meses mas hoje, olhando para trás, parece que durou uma eternidade. Está tudo no livro, que saiu na semana seguinte à rejeição da Emenda Dante de Oliveira. O último capítulo eu mandei por telex daqui de Brasília, assim que terminou a votação."

Personagens

"Nas muitas matérias que fiz, nos dramas humanos que acompanhei, como a grande epopéia brasileira que foi Serra Pelada, no fundo existe sempre a mesma coisa, a luta de um povo para se libertar, para ter melhores condições de vida, para ser mais feliz. Tudo que é ligado às pessoas me emociona e na campanha das diretas quase todo mundo chorava, porque era muito bonito. O palanque era sempre o mesmo, as mesmas figuras falavam e faziam mais ou menos os mesmos discursos. O que mudava era a platéia, a cada comício a emoção era maior porque a participação popular aumentava. Por isso eu preferia ficar lá embaixo, no meio das pessoas, dos anônimos, à procura de personagens. Não me lembro de ter visto incidentes, brigas. Era aquele grito que estava preso há muito tempo e as pessoas soltavam. Nesses quase 40 anos de profissão, sempre me interessei muito mais pelo cidadão comum do que pelas pessoas famosas, pelos políticos. É a primeira vez que moro em Brasília e hoje convivo com políticos todo dia, é a primeira vez que trabalho em governo."

Votação

"Desde o início, os cientistas e os comentaristas políticos diziam que a emenda não seria aprovada e procuravam desanimar a gente. Mas havia uma confiança, uma certeza de que a ditadura estava no fim, um clima de expectativa de que seria possível. Tanto que faltava muito pouco, apenas uns vinte e tantos votos para a aprovação, enquanto nas ruas aconteciam cenas ridículas, como aquelas protagonizadas pelo general Newton Cruz, que era o comandante militar do Planalto. Ele queria interromper a caminhada do povo no grito. Com uma varinha, um chicote, ficava batendo nos carros e xingando. Ele não se conformava, estava irado com a festa do povo na Esplanada dos Ministérios. Quando vi essa cena, senti que a ditadura se acabava. Depois, foi aquela choradeira, todo mundo muito triste porque aquela era uma esperança de praticamente todos os brasileiros."

Fuga

"Por coincidência, no Congresso, eu estava no lugar onde ficam os gabinetes dos parlamentares. Vi vários deles fugindo do plenário para se esconder nos gabinetes. Eles não tinham coragem de votar contra as diretas e então simplemente não votaram, ausentaram-se, refugiaram-se nos gabinetes. Naquele momento eu percebi que ia ser muito difícil a aprovação. Após a derrota, continuei no mesmo lugar e fiz uma coisa que jornalista não deve fazer e que não é exemplo para ninguém. Nem contei no livro. Fiquei com tanta raiva que quando os parlamentares fugiam para os gabinetes, eu e mais outros colegas demos um pés na bunda deles. Era a única coisa que a gente podia fazer. Eles até podiam chamar os seguranças, mandar prender a gente, mas estavam tão envergonhados que procuravam sair depressa."

Lideranças

"O Ulysses Guimarães e o Lula foram as grandes lideranças da campanha. Foi o ex-deputado quem contou sobre a articulação do Tancredo Neves com outros políticos para chegar ao Colégio Eleitoral. Havia grupos que discretamente preparavam esse caminho, vários deles até iam aos comícios, apareciam nas fotos, enquanto o outro grupo se unia cada vez mais na luta pelas diretas. Se todos estivessem unidos, acho, a emenda teria passado. E se a emenda passasse, o candidato seria Ulysses. Se houvesse Colégio Eleitoral, o candidato seria Tancredo – foi o que acabou acontecendo. O Lula e o Senhor Diretas se davam muito bem, um como grande líder popular e o outro como grande articulador político. Eles tinha uma relação meio de pai para filho. E nunca desanimaram, compareceram do primeiro ao último comício. A campanha pela redemocratização vinha do final dos anos 70, com muita força no ABC paulista, um centro de resistência com as lutas do movimento sindical em que o Lula sobressaía. O que se queria era a democracia, não era para eleger ninguém. A campanha das diretas era suprapartidária, era a campanha de um país pela normalização democrática."

Jornalismo

"Esse negócio de imparcialidade jornalística, eu sempre disse isso e parece que também escrevi, simplesmente não existe. O jornalista tem é que ser honesto, em tudo – na política, no futebol – e contar o que aconteceu o mais próximo possível da verdade. Porque verdade absoluta também não existe, cada um de nós que vê uma cena, que vê uma paisagem, vai descrever de uma forma diferente. A Folha de S. Paulo foi o único veículo de comunicação que apoiou a campanha das diretas desde o início, no sentido de se engajar e não apenas ceder espaço na cobertura. Era ordem do dono do jornal e não havia limite para despesas, o que considero um momento raro na imprensa brasileira: quando a direção e a redação do jornal querem a mesma coisa. No final, todos os veículos acabaram abrindo espaço, a partir da pressão popular. Quando se diz que a mídia faz a cabeça do povo, nesse caso foi o contrário. Foi o povo quem fez a cabeça da mídia."

Lição

"A grande lição que ficou é a de que a gente não deve desistir nunca. Acho que foi uma lição de persistência. E que a campanha das diretas simboliza um pouco também a história do próprio Lula, que chegou à Presidência da República em eleições diretas depois de ter sido derrotado em três votações. A campanha das diretas foi assim também: ela foi vitoriosa porque mobilizou a população, mas a emenda acabou derrotada na votação. Como lição de vida, o que ficou é que você não deve desistir na primeira pancada que leva, na primeira derrota. Ao contrário, acho que isso deve ser um estímulo para continuar lutando."