Waldir Pires: "Nada foi mais terrível para o país do que a interrupção de 64"

29/03/2004 - 20h16

Brasília, 29/3/2004 (Agência Brasil - ABr) - À época consultor Geral da República, cargo semelhante ao de advogado Geral da União, Waldir Pires estava ao lado do presidente João Goulart quando este deixou Brasília, na madrugada do dia 2 de abril de 64. Com Darcy Ribeiro, então chefe do Gabinete Civil, tentou organizar a resistência democrática ao Golpe Militar. Em vão. Horas depois, clandestino, deixou o País. Começava o exílio, que duraria até 1969.

Waldir Pires foi o redator do comunicado enviado ao Congresso Nacional que informava os parlamentares sobre a permanência de Jango em território nacional. Por isso, chama a decisão do senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional que declarou vago o posto de presidente da República, de "a grande mentira".

Segundo ele, conforme consta do comunicado, registrado nos anais do Congresso com a data de 3 de abril, Jango governava o País do Rio Grande do Sul, sob a proteção de forças militares legalistas.

Atualmente, Pires ocupa o posto de ministro-chefe da Controladoria Geral da República. Em mais de quarenta anos de vida pública, foi governador da Bahia e integrou, como vice, a chapa encabeçada por Ulisses Guimarães à Presidência, em 1989. No depoimento que segue, ele narra sua história dos dias que sucederam o Golpe e faz uma análise da ruptura constitucional, cujos estilhaços até hoje são sentidos.

Jango deixa Brasília

"O presidente João Goulart deixou Brasília para resistir ao Golpe Militar em Porto Alegre. Ele queria manter as instituições democráticas e a independência do país. Jango saiu da capital federal na noite do dia 1º de abril, mais ou menos por volta das dez horas da noite. O avião em que ele viajaria, um jato da Varig, foi sabotado. Suas turbinas não funcionavam. E era indispensável que ele viajasse nesse avião, porque nós queríamos que ele chagasse até o Rio Grande do Sul. Esse avião era a jato. Os aviões de caça da FAB, conseqüentemente, não poderiam derrubar o avião do presidente, nem interceptá-lo. Porque esse avião foi sabotado, Jango acabou viajando num avião bimotor. Chegou a Porto Alegre no fim da noite. Eu estava no aeroporto. Eu, Darcy (Ribeiro), Tancredo Neves e alguns outros. O presidente embarcou e decolou. Entre um e outro momento, chegaram os comandantes militares, que já tinham, digamos assim, compromisso com a nova realidade".

Porto Alegre, capital do Brasil

"Jango chega a Porto Alegre e encontra o general Ladário (Pereira Teles) o esperando no aeroporto. O general era o comandante do 3º Exército, fiel à legalidade constitucional do Brasil, mas não pôde levá-lo para o quartel. Somente o levou para sua casa, onde as tropas fiéis a Jango o protegiam e o guardavam em todo o quarteirão".

Impeachment

"Logo que Jango viajou, nós voltamos ao Palácio do Planalto. Eu, consultor Geral da República, e Darcy (Ribeiro), chefe do Gabinete Civil, fomos direto para a sala da Casa Militar, no quarto andar. Lá ficamos a noite toda, numa batalha gigantesca, tentando impedir o impeachment. O impeachment não seria feito porque precisaria de dois terços do Congresso Nacional, e eles não tinham dois terços para fazer um golpe de Estado. Em determinado instante, por volta de meia noite, o deputado Doutel de Andrade, que era líder do Partido dos Trabalhadores, do Partido Trabalhista (PTB), partido do presidente, chegou inquieto e apressado, dizendo: ‘Querem dar o golpe, querem fazer a mentira prevalecer, estão querendo declarar vaga a Presidência da República, porque o presidente abandonou o governo e abandonou o País. Eu quero conversar com vocês sobre isso’. Eu disse: ‘Doutel, vai conversar ali com o Darcy. Nós conversaremos em seguida, mas eu vou fazer aqui agora uma comunicação para o Congresso Nacional’".

Carta ao povo brasileiro

"Nós não tínhamos mais datilógrafos, não tínhamos mais ninguém. Era a madrugada do dia primeiro para o dia 2. Botei um papel na máquina e redigi a última comunicação do governo, naquela ocasião. Está publicado no Diário do Congresso, do dia 3 de abril. O comunicado dizia: ‘Senhor presidente do Congresso Nacional, o presidente da República, o doutor João Goulart, incumbiu-me de comunicar ao Congresso que se dirigiu à cidade de Porto Alegre, para, junto ao Comando do 3º exército, assumir a direção da luta de resistência democrática, para defender a ordem constitucional no Brasil, manter as liberdades do povo brasileiro’. Portanto, tudo isso dentro da Constituição e no exercício do seu pleno poder de presidente da República. Ele não precisava de licença do Congresso Nacional para se ausentar de Brasília, de modo que era uma mentira, absolutamente uma mentira. O presidente pode sair da capital do País para qualquer parte do território nacional sem precisar pedir licença ao Congresso Nacional".

Mentira nacional

"O Doutel saiu, levou a carta ao plenário, leu e entregou o comunicado à Mesa. Mas o presidente do Congresso Nacional, que era o senador Auro de Moura Andrade, precipitou os acontecimentos e fez a grande mentira nacional. Disse: ‘Declaro vaga a Presidência da República. O presidente da República se afastou, a nação está acéfala. Declaro vaga, convoco o presidente da Câmara dos Deputados a assumir a chefia do poder Executivo’. Deu o golpe de Estado na manipulação da mentira. Houve um tumulto gigantesco. Isso era, mais ou menos, uma e meia para duas horas da manhã do dia 2 de abril, da madrugada do dia 1º para o dia dois. Poucos instantes depois, talvez duas horas depois, o governo dos Estados Unidos já declarava o reconhecimento do governo militar no Brasil, do governo que havia deposto uma posição constitucional democrática e legítima".

Clandestinos

"Nós tentamos ir para o Rio Grande (do Sul). A situação era tensa, sobretudo depois do início da caminhada do general (Olympio) Mourão, vindo de Belo Horizonte para, com forças militares, realizar o golpe. Nós decidimos ir ao encontro de Jango. Sairíamos ainda na madrugada para Porto Alegre. Depois do acerto, nós nos despedimos e eu disse: ‘Darcy, vou passar em casa, vou dar um beijo em Iolanda, vou beijar meus filhos (eu tenho cinco filhos e eles eram crianças) e nós vamos para Porto Alegre’. Darcy disse: ‘Eu vou fazer o mesmo. Nós nos encontraremos daqui a vinte e cinco minutos’. Eu cheguei um pouco antes, porque morava mais próximo. No aeroporto, um major da Aeronáutica, ao ver-me, disse: ‘Senhor Waldir, o que o senhor está fazendo aqui, o senhor está maluco? O senhor não pode ser visto. O senhor vai ser preso’. Eu disse: ‘Estou esperando Darcy, nós vamos para o Rio Grande, nós vamos conseguir instalar o governo da resistência e da legalidade lá’. Ele disse: ‘Não, absolutamente não. Não tem mais ninguém aqui, não há possibilidade nenhuma, vamos sair daqui, senão o senhor será preso já’. Aí o Darcy vinha chegando. Nós fomos para um canto. Ao sairmos, vimos que o aeroporto já estava controlado. Brasília já estava controlada, portanto, nós já estávamos na posição de clandestinos. Fomos para a casa de amigos e fixamos um horário para nos vermos no dia seguinte".

Bye, Bye, Brasília

"No dia dois de abril, fizemos a primeira reunião. Estabelecemos que faríamos uma divisão de trabalho. Nessa ocasião, a turbulência era muito grande, não se tinha ainda nem sequer a idéia exata de quais eram as forças dominantes na vitória do golpe, de modo que então nós decidimos que quem tivesse mandato ficaria em Brasília. Quem não tivesse mandato iria para o Rio Grande para ajudar a composição do governo que continuaria a batalha constitucional da legalidade e do progresso no país. De forma que Rubens Paiva, que estava nesta reunião - nosso Rubens Paiva, que a ditadura pegou, matou, assassinou, esquartejou, o Rubens que nós nunca mais tivemos possibilidade de encontrar, nem sequer os seus restos mortais - foi quem montou a logística da minha saída e a de Darcy de Brasília".

Rumo a São Borja

"Nós decolamos de Brasília na madrugada do dia cinco. Não sabíamos, ainda em Brasília, que o presidente João Goulart, já naquele dia, à tarde, tinha saído do Brasil e pedido asilo político no Uruguai. Saímos na direção da fronteira de Mato Grosso com a Bolívia para, em seguida, descer costeando o Brasil e pegar o Rio Grande do Sul, com destino a São Borja, e de São Borja, com os dispositivos locais existentes, chegaríamos a Porto Alegre, onde o presidente, imaginávamos, estaria. Na realidade, esse avião decolou daqui às seis horas da manhã com autorização legal. Rubens montou tudo. Rubens era uma figura extraordinária. Era um engenheiro, deputado federal por São Paulo, empresário vitorioso. Foi ele que contratou o avião e o piloto, que por sinal acabou ficando no exílio por algum tempo, trabalhando com o presidente. O piloto se chamava Almir.

Nós fomos para o aeroporto às 4 horas da manhã, de três e meia para as quatro horas da manhã, conduzidos por Rubens Paiva. Ele tinha já selecionado, inclusive, a moita em que nós nos deitaríamos durante a madrugada para esperar o dia amanhecer. Quando o dia amanhecesse, o avião obteria a autorização para fazer uma viagem para Anápolis. Era um teco-teco de lona e, ao invés de irmos para Anápolis, nós iríamos, como fomos, na direção do Mato Grosso, fronteira com a Bolívia".

Próxima parada: Uruguai

"Nós então dormimos ali, na fronteira da Bolívia com o Mato Grosso. Nessa noite - nós levávamos um radiozinho de pilha - ouvimos a notícia: ‘O presidente da República pede asilo político ao governo do Uruguai e desce no aeroporto de Montevidéu’. Então o presidente só saiu do Brasil no dia 4 de abril. A mentira gigantesca continuou sendo manipulada o tempo todo. Na realidade, como o outro avião (que levaria combustível) não chegou, nós esperamos mais. No dia seguinte, o piloto, num determinado instante, nos disse: ‘Nós ficamos sem saída’. Não tínhamos gasolina para continuar a viagem. Nem podíamos mais ir para o Rio Grande do Sul, porque o presidente não estava mais lá. Portanto, não tinha mais sentido ir para o Rio Grande, para fazer a luta da legalidade. Decidimos que iríamos para o Uruguai".

Gasolina misturada

"O exílio é absolutamente surpreendente. Não sabíamos disso. Minha mulher ficou sem saber onde eu estava. Nessa ocasião, o piloto Almir nos disse assim: ‘Olha aqui, eu já viajei com gasolina de caminhão. Se vocês topam, nós viajamos. Eu agora já sei quem são vocês’. Nessa hora, ele, que não tinha nada com política, já estava por dentro de tudo. Era uma figura humana extraordinária, o Almir. ‘Eu vou sobrevoar aqui esta fazenda. Nessas fazendas tem sempre estoques de combustíveis, estoque de gasolina, de querosene, compro duas latas de 20 litros cada uma e nós levamos’. Carregamos uma no meu colo, outra no colo do Darcy e continuamos a viagem, para descer num campo qualquer fora do território nacional. Ele fez um plano de vôo para irmos direto para a cidade de Salto, no norte do Uruguai. De lá, então, nós chegaríamos a Montevidéu. Esse era o destino. Nesse rumo, ele manteve um plano de vôo admirável. O tempo estava bom, atravessamos com gasolina misturada, de avião e de caminhão, que íamos introduzindo gradativamente".

Escala no Paraguai

"Não foi possível chegar à cidade de Salto. Nós descemos no Paraguai e só depois fomos na direção da cidade uruguaia. Mas, próximo à cidade de Salto, nós encontramos pela frente uma tempestade terrível. Então o Almir, o piloto, dizia: ‘Olha, nós já saímos de tudo, mas dessa tempestade aí não dá. Eu vou descer aqui em qualquer canto, vou atravessar aqui a fronteira do Uruguai, mas na fronteira logo eu começo a descer’. Então ele realmente atravessou a fronteira, desceu em dois vôos rasantes para afastar as ovelhas e fez do pasto sua pista, naqueles pampas uruguaios. Descemos e em seguida saímos andando. O piloto ficou lá tomando conta do avião e a gente foi fazer uma verificação. Encontramos uma populaçãozinha, oito ou dez pessoas, que viram o avião rodar e desaparecer e vieram na direção do barulho. Nos encontraram. Nós dissemos: ‘Somos membros do governo do presidente João Goulart, estamos descendo aqui no Uruguai, onde é que estamos?’ Eles nos disseram: ‘Juntinho daqui onde vocês estão tem uma estação balneária de águas termais’".

De calção de banho, o pedido de asilo

"Chegamos à Estação de Arapeí. Coisa modesta, mas um verdadeiro prêmio para nós naquele momento. Aquelas águas mornas. Nós arranjamos um calção lá no hotel e ficamos ali vendo aquelas tensões todas e conversando e pensando no destino de nosso País e na luta que viria pela frente. Nesse ínterim, chega o cabo, comandante do destacamento de Arapeí. Nessa hora, eu disse ao Darcy : ‘Vou pedir aqui um asilo político, para que ele fale com o governo do Uruguai’. Dirigi-me a ele, de calção de banho, à beira da piscina: ‘Eu quero dirigir-me ao senhor, que é representante do governo do Uruguai aqui, neste lugar, para em nome das normas do Tratado de Havana, do qual Brasil e o Uruguai são signatários, e que estabelece a proteção dos cidadãos e a garantia dos direitos políticos em toda a América Latina, para pedir o asilo político, registrado no tratado como norma a ser seguida pelo seu país e pelo meu’. O cabo bateu continência e foi comunicar as autoridades uruguaias. Ali nós dormimos".

Reencontro

"No dia seguinte, fomos para Montevidéu. Nos encontramos, enfim, com o presidente João Goulart. Isso já era dia 6 de abril. Ele ficou surpreendido com a nossa chegada, porque não sabia que estávamos a caminho. Nos abraçamos. Ele estava bem. Nos recebeu bem. Claro, estava triste, querendo saber notícias. Nós relatamos a ele os acontecimentos, mas tínhamos poucas notícias. Informações de quem estava afastado do centro da atividade ostensiva. Já estávamos em luta subterrânea. Mas ele estava bem. O presidente sempre tinha uma posição muito humana, muito lúcida.".

Ultima parada: Paris

"Na cabeça de nós todos, aquela história iria durar 60 dias inicialmente, depois seis meses, depois um ano. Quando chegou um ano eu percebi que não podia mais ficar no Uruguai. Eu tenho cinco filhos, minha mulher. O Uruguai era um país em que nenhum de nós tinha trabalho. Então fui para a Europa, tentar a vida lá. Meus filhos voltaram para a Bahia e eu fui pra Europa. Depois de eu ter me reorganizado, Iolanda veio buscar as crianças. Candidatei-me a professor da universidade na França e fui contratado. Vivi os anos exílio na França como professor".

Em busca de alternativas

"Há um grande instante na história deste País, que sinalizou a absoluta interrupção do projeto anterior e que foi marcado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas. Quando ele faz a denúncia do problema da terra e quando ele faz a denúncia do problema da não industrialização brasileira e do controle externo sobre o Brasil e dá um tiro no peito. Naquele momento, é um dado histórico importantíssimo, uma fase do processo brasileiro, nós não poderíamos continuar mais. E o Brasil estava buscando uma solução, que era o desenvolvimento econômico, com liberdades do povo, com a democracia. Naquele tempo e naquele momento, quando alguém cogitava disso, era tachado de comunista. Eu, por exemplo, nunca fui comunista, nunca me filiei ao Partido Comunista. Fiz minha vida inteira em aliança com os comunistas. Sempre. Mas nunca admiti ser comunista porque, para mim, nunca se chegaria a um regime, digamos assim, de igualdades sociais por via da interrupção das liberdades".

Jango nunca foi comunista

"Jango nunca foi comunista. Ele era um grande proprietário e gostava disso. Lá no exílio - nós só nos tornamos amigos no exílio - ele me dizia naquelas noites infindáveis em que tínhamos muito tempo para conversar: ‘Eu sei fazer duas coisas Waldir. Eu sei fazer política e sei criar boi, cuidar da terra’. Era disso que ele gostava e sabia. E fazia bem. Quando ele chegou à capital da República, como ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas, ele já era um homem muito rico, provavelmente o maior invernista de terras do Rio Grande do Sul. Era, provavelmente, o principal fornecedor de carne para os frigoríficos e por isso era poderoso".

Crimes em nome da democracia

"Para mim, a contribuição dos Estados Unidos para o golpe foi importante. Hoje isso é uma coisa muito conhecida. Hoje se sabe, existem estudos sobre isso. Os Estados Unidos têm uma coisa muito boa: praticamente todos os documentos se tornaram públicos, estão nas universidades, nas bibliotecas. Desde 1980 os estudiosos de ciências sociais, de ciências políticas, têm acesso a todos os documentos. Hoje se sabe, quanto se conspirou nos Estados Unidos para o golpe de Estado no Brasil. Passo a passo. Para o golpe de Estado no Brasil e para os golpes na América Latina toda. Essa foi uma fase da intolerância nos Estados Unidos. Eles pretendiam assegurar a democracia, matando a democracia, como se deu no Brasil, como se deu no Uruguai, como se deu no Chile, como se deu na Venezuela, como se deu no Peru, na América Latina inteira. Foram caindo todos os regimes democráticos e eles instalando ditaduras em nome da democracia".

Desafio

"O grande desafio ainda hoje é responder à pergunta: ‘Como é que nós organizamos democraticamente um regime que abranja todo o povo, que proteja a população, que proteja o trabalho, que proteja o emprego, que proteja o bem-estar, que assegure aos jovens e às famílias a oportunidade de viver em paz?’. Esse é o grande desafio que está posto no mundo de hoje. Ainda estamos por estabelecer este caminho".

Brasil interrompido

"Nada é mais terrível para o Brasil do que a interrupção em 1964 do desenvolvimento político do País, da incorporação gradual do seu povo na cultura global do Brasil, na capacidade de cada um ir se tornando gradativamente cidadão e cidadã. Aquilo tudo foi interrompido por uma visão canhestra, uma visão pequena, obtusa, que exclui o povo do processo civilizatório. Hoje, o Brasil é um dos países campeões da criminalidade no mundo. Por quê? Por que essa exclusão? Foi o povo brasileiro que mudou? A natureza do nosso povo mudou? A índole do nosso povo mudou? Ou não mudaram as estruturas sociais, as quais eram terrivelmente arcaicas e continuaram arcaicas?"

Retorno da esperança

"Eu, por exemplo, digo muito claramente: o governo do presidente Lula representa, para mim, para a minha geração, a retomada daqueles sonhos de 40 anos atrás, que foram interrompidos. A mudança que se pretende hoje, para garantir que a população toda viva com um mínimo de condições, tenha uma existência decente, era o que se chamava, há 40 anos, Reformas de Base. E ainda hoje há muitas dificuldades. Uma concepção de política que não utiliza os fatores decisivos da inteligência humana. Hoje temos, muito mais do que quarenta anos atrás, uma capacidade gigantesca de produzir alimentos, de produzir bens. No entanto, estamos aí com uma sociedade de escassez absoluta, escassez de tal natureza que nós temos 50 milhões de brasileiros que passam fome, que suportam condições abaixo do nível da existência humana".

Na lista do AI-1

"Na madrugada do dia 1ª de abril para o dia 2, até o dia 9, num governo que não tinha nenhuma qualificação, os chamados ‘comandos revolucionários’ baixaram um ato institucional que não tinha número, porque eles esperavam que fosse o único. Não foi o único, depois vieram o dois, o três, o quatro, o cinco. Este foi o mais cruel de todos, o mais perverso, mas ele só chegou em 13 de dezembro de 1968. Eu não estava no Brasil havia muito tempo. Eu caí no AI-1, que cassou os direitos políticos de 100 pessoas no Brasil. Eu estou no sétimo lugar. Na primeira posição estava o João Goulart. O Darcy Ribeiro era o quarto".

Amargura do exílio

"Uma das coisas que muito nos marcou, quando chegamos a Montevidéu, eu e Darcy - nós ficamos no mesmo quarto de uma pensão - foi ver a quantidade de gente exilada. Os espanhóis exilados desde os anos 30, dos tempos da Guerra Civil e da vitória do General Franco. E eu via as famílias, o quadro de amargura, de tristeza, de senhoras e senhores e de jovens excluídos. Gente que tinha ido como exilado, que não tinha ido como emigrante. O emigrante é uma pessoa que vai disposta a conquistar o seu tempo e a sua vida na terra dos outros. O exilado não. O exilado é uma pessoa que vai e pensa o tempo inteiro em voltar, o tempo inteiro em seu país, vai contrariado, vai impelido pela ditadura, pela brutalidade".

A marca da intolerância

"O AI-5 (Ato Institucional nº 5, editado em 13 de dezembro de 1968) foi a marca terrível de uma posição política intolerante, que significava que a ditadura brasileira seria uma coisa demorada. Então, quando se deu o AI-5, eu intimamente, tomei a minha decisão: ‘Eu digo, vou me preparar para voltar. Haja o que houver’. Eu tinha uma posição razoável, era professor universitário, tinha um salário razoável que dava para viver minha vida simples, com meus cinco filhos e minha mulher. Vivíamos em paz, conversávamos com todos os exilados do mundo e com os exilados do Brasil. Mas eu tinha decidido que iria voltar, até porque os processos que existiam contra mim eram do dia da resistência. (1º de abril de 1964). Era evidente, portanto, que eu praticara todos os atos dentro da ordem legal e constitucional vigente, da democracia brasileira que nós defendíamos. De forma que esses processos foram arquivados. Não tiveram possibilidade de ir avante, não podia haver subversão daquilo que era em defesa da legalidade e da constitucionalidade, da Constituição de 1946.

Então decidi voltar. Com o AI-5, em seguida, eu comecei a me arrumar. Porque, antes do AI-5, as passeatas do Rio de Janeiro foram nos mobilizando. Portanto, cada um de nós foi se arrumando. Como é que se pode voltar? Digo, bom, eu vou voltar. Nós dizíamos sempre, para cidades em que for viável a luta de massas, a luta política de construção de uma redemocratização brasileira. Então, nós tínhamos isso muito definido estrategicamente. Voltar para o Brasil significava voltar para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Eu não podia voltar para a Bahia. Na Bahia, eu não tinha nem como ganhar a vida. Então, decidir ir para o Rio de Janeiro".

Volta adiada

"Chegamos a comprar um apartamentozinho no Rio de Janeiro, com Iolanda e cunhados. Quem ajudou inclusive a encontrar esse apartamento lá no Rio de Janeiro, na Rua Toneleiros, quem adquiriu o apartamento foi o Rubens Paiva, em 1968. Então o Darcy (Ribeiro) voltou, mas eu não podia voltar em 68. Disse a eles: ‘Eu entro nessa história, nós estamos ajustados, mas eu não posso voltar agora’. Isso porque eu assumi o compromisso com a universidade. Tinha que concluir o curso. E o curso só se concluiria no mês de junho do ano seguinte, em 69. De modo que então eu tinha que cumprir a minha palavra".

Autonomia mínima

"Queríamos permitir que o governo tivesse uma política que respeitasse o interesse da sociedade brasileira e que garantisse a participação do Brasil nas decisões do mundo. O presidente João Goulart defendia essa tese. Propunha relações comerciais com a União Soviética, que nós não tínhamos. Propunha relações comerciais com a China Continental, que nós não tínhamos. A União Soviética tinha relações diplomáticas com todas as nações poderosas do mundo. Por que o Brasil não podia tê-las? Essas autonomias mínimas deveriam ser exercidas".

O latifúndio é um crime contra a paz social

"Toda vez em que se falava na questão social, em melhorar a renda e o salário, em garantir o acesso das pessoas à terra, era quase um crime. Coisas que os Estados Unidos fizeram na metade do Século XIX. Uma das reformas básicas - está encaminhada na mensagem do presidente João Goulart, de 15 de março de 1964 - era a reforma agrária. Era um princípio, por exemplo, que estava na raiz do direito europeu e do direito norte-americano desde a metade do século XIX. Para nós aqui, era caso de polícia. Então, o presidente introduziu a reforma agrária no Brasil.

Não é lícito. Não é lícito manter a terra improdutiva em nome e por força da propriedade. A terra não está ai para ser improdutiva. Deus não pôs a terra no mundo para ser improdutiva. Então, o latifúndio é um crime contra a vontade de Deus. É um crime contra a paz social. Mas toda vez que se pretendia estabelecer regras que fossem capazes de modificar aquele quadro, a reação era bruta, e assistíamos a um absurdo de intolerância".

Garantias ao povo camponês

"Jango se propunha a fazer reforma agrária em suas terras porque era o presidente da República e queria dar o exemplo. Certa vez ele disse: ‘Eu sou um grande proprietário. Eu entendo que o Brasil deveria ser um país de milhões e milhões de proprietários de terras. Eu quero dar este exemplo’. O que importava é que a reforma agrária estava sendo posta na ordem positiva do direito do brasileiro, e isso é que era importante. Se ele faria ou não (a reforma agrária), seria um problema futuro dele. Mas, na realidade, ele estava lutando politicamente para isto. E não se tratava da posição política de ninguém. Tratava-se de melhorar as condições do povo brasileiro.

Nós nos tornamos uma das nações mais atrasadas do mundo na relação da terra. Se se quer garantir qualquer tipo de conquista do povo camponês, é preciso dar-lhe o mínimo de possibilidade de vida. Por isso, realizamos no Brasil esse crime, esses trinta, quarenta anos de migrações no Brasil. Essa migração brutal. Há quarenta anos, tínhamos 20% da população nas cidades e 80% da população na área rural. Hoje temos 80% na cidade e 20% no campo. Nenhum país no mundo fez isso. E aí estão as favelas, o desemprego brutal e a insegurança terrível da sociedade urbana. Resultado da insensatez, da incapacidade das elites, que mantiveram essa estupidez".